#Especial Mentes ao alvo: Tiros acertam sanidade da juventude periférica

Mortes impõem cotidiano marcado pelo luto para jovens de áreas socialmente vulneráveis, que precisam superar a perda violenta de amigos/as e familiares

Texto: Giovanna Carneiro e Lenne Ferreira | Arte: Fran Silva

Tinha tudo para ser só mais uma sexta-feira comum ao dia a dia dos moradores do Barro, Zona Oeste do Recife, naquela noite de setembro de 2021. O trânsito de pessoas retornando do trabalho, o conhaque de alcatrão do Bar do Ciço. O pastel fritando no óleo quente como o vagão do metrô lotado que para na estação. A disputa do culto e o Brega Funk por atenção. Ume roteiro cotidiano que foi alterado pelos sons de arma de fogo que alvejaram uma adolescente de 15 anos. Não se sabe ao certo o motivo do assassinato, que foi relacionada com o tráfico de drogas, mas a notícia chegou rápido aos ouvidos de sua amiga, Maria, que antes dos 18 conheceu o luto pela morte de uma pessoa próxima.

Hoje, aos 19, ela lembra que estava em casa quando soube do assassinato. “Fui até lá para ver o corpo e me senti muito mal”. O acontecimento representou um divisor de águas na vida da jovem, que assumiu sua identidade trans na mesma época que a amiga e que passou a lidar com sentimentos como ansiedade e medo. Maria também precisou se afastar um tempo de sua comunidade por receio da família de que algo pudesse acontecer com ela.

Mortes violentas letais como a da amiga de Maria, uma adolescente preta e travesti, não são incomuns no dia a dia das periferias de todo o Brasil e provocam efeitos nocivos à saúde emocional de crianças e adolescentes. As imagens de amigos e amigas do menino de 13 anos, morto durante uma operação truculenta da polícia na Cidade de Deus (RJ), no último dia 06 de agosto, dão a dimensão de um problema invisível ao poder público. As fotos, que circularam nas redes sociais, provocaram grande comoção pública ao expor a emoção de meninos e meninas durante o enterro do garoto que foi alvejado enquanto passeava de moto com um primo.

Emoção de adolescentes marcou enterro do menino de 13 anos morto pela polícia do RJ Imagem: Rafael Brito

Em todo o Brasil, o luto precoce faz parte da rotina de comunidades onde a violência virou um espetáculo de horror que contraria a lei natural da vida. Nascer, crescer, reproduzir, envelhecer e morrer são etapas que fazem parte da trajetória humana. Mas, até chegar ao último estágio, cada pessoa teria tempo para construir uma história, realizar sonhos e viver experiências diversas. Porém, para crianças e adolescentes de diversas periferias do país, as armas de fogo abreviam trajetórias fazendo com que o luto causado por armas de fogo se apresente cotidianamente, o que provoca efeitos no desenvolvimento cognitivo deste grupo social.

Os disparos, que acertam os corpos e a saúde mental da juventude periférica, tem relação direta com a atuação da polícia e com a disputa pelo comando de territórios pelo tráfico de drogas. Dados do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no segundo semestre de 2023, revelaram um aumento no percentual de mortes de crianças atingidas por disparos de arma de fogo, passando de 50% das mortes violentas intencionais (MVI) em 2021, para 55,8% das MVI em 2022. O levantamento revelou ainda que existe um alto índice de mortes de crianças e adolescente, que têm de 12 a 17 anos, decorrentes de intervenção policial, contabilizando 358 vítimas em 2022.

O aumento das estatísticas também está relacionado com a política armamentista adotada pelo governo de Bolsonaro, que afrouxou a legislação sobre armas e munições, fazendo com que houvesse crescimento vertiginoso nos registros e compras de armas em todo o país, de acordo com a pesquisa Armas de Fogo e Homicídios no Brasil do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo o Estudo, se não houvesse o aumento de armas de fogo em circulação a partir de 2019, teria havido 6.379 homicídios a menos no Brasil. “Ou seja, o aumento da difusão de armas terminou por impedir, ou frear uma queda ainda maior das mortes”, concluiu a pesquisa. 

As vítimas das mortes por armas de fogo possuem o mesmo perfil: jovens, negros e pobres. Dados do Instituto Fogo Cruzado, organização que monitora tiroteios nos centros urbanos, mostram que no Recife e RMR,  entre os anos de 2018 e o 2023, 367 jovens, de até 18 anos, foram assassinados. Destes, 109 eram moradores do Recife, 62 de Jaboatão dos Guararapes e 55 moravam no Cabo de Santo Agostinho. A frieza das estatísticas oculta consequências que incidem diretamente na saúde mental de adolescente, principalmente. Lidar com o luto causado pela violência armada pode marcar profundamente o desenvolvimento de uma pessoa. É o que explica a psicóloga Alissandra Cruz, que tem especialização em adolescência, suicídio e enlutados. 

Crédito: Instituto Fogo Cruzado

“A estrutura da personalidade de crianças e adolescentes vai sendo desenvolvida a partir das experiências que esse grupo tem ao longo da vida, portanto, quanto mais são expostos a situações adversas, de dor, perdas profundas, no caso do luto por violência, mais comprometida fica a capacidade desses jovens de estruturar o próprio ego e de serem adultos mais completos, mais saudáveis, emocionalmente falando. Claro que não significa que todo jovem da periferia será um adulto emocionalmente fragilizado, não é isso. Mas ele terá mais dificuldade de se tornar um adulto saudável visto que estará exposto a situações de luto precoce”, pontua ela, que tem 26 anos de experiência com comportamento humano.

A violência armada determina diretamente a forma como crianças, adolescentes, adultos e idosos vivenciam o território. Medo e insegurança fazem parte do cotidiano de famílias que já se acostumaram a conviver na zona de risco. Coordenadora Regional do Fogo Cruzado em Pernambuco, Ana Maria Franca comenta sobre a causa das mortes dos jovens vítimas de disparo de armas de fogo na RMR: “O que tem acontecido no contexto de Pernambuco é um aquecimento na disputa nas rotas do tráfico e a forte presença das facções na Região Metropolitana do Recife. São grupos que aliciam muitos jovens para trabalhar no crime organizado. No Cabo de Santo Agostinho, de forma mais específica, a incidência do tráfico é muito notável e a alta mortalidade de jovens está ligada à dinâmica criminal aquecida e a falta de políticas públicas direcionadas a esse público”.

As operações policiais, que ocorrem principalmente em bairros de áreas periféricas, influenciam no grande número de mortes por violência armada. De acordo com os dados do Fogo Cruzado, os bairros com maior número de mortes por disparos de arma de fogo que ocorreram durante operações policiais, entre os anos de 2018 e 2023, são: Ponte dos Carvalhos, no Cabo de Santo Agostinho, com 14 mortes; Pina, no Recife, com 11 mortes e Prazeres, em Jaboatão dos Guararapes, com 8 mortes. 

Crédito: Instituto Fogo Cruzado

“Aqui em Pernambuco nós não temos operações policiais frequentes como no Rio de Janeiro, mas temos confrontos. Por incrível que pareça, as mortes por violência policial em Pernambuco não são tão expressivas se comparado a Bahia ou ao Rio de Janeiro, apesar de ainda termos um grande número de vítimas”, revelou Ana Maria Franca ao atestar que as disputas territoriais motivadas pelo tráfico de drogas se apresenta como um dos mobilizadores das mortes por disparos de armas de fogo no estado. 

Frente ao cenário de medo e horror, crianças e adolescentes precisam lidar mais cedo com a dor do luto como mostraram os registros que circularam nas redes sociais enfatizando a comoção dos amigos e amigas do menino morto a tiros no Rio de Janeiro. O compartilhamento em massa gerou questionamentos sobre a exposição de um grupo social que deveria ser protegido por lei, mas que segue tendo negados direitos básicos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescentes.

Leia mais sobre o impacto da política antiproibicionista e o estado de luto imposto pelo enfrentamento ao tráfico acessando a segunda parte da matéria a seguir:

#Especial Mentes ao alvo: Combate às drogas impõe estado de luto

 

Escrito por:

Afoitas Jornalismo

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