#Especial Mentes ao alvo: Combate às drogas impõe estado de luto

 

“Doeu muito, mais do que se fosse uma morte natural”. A perda brutal de amigos e parentes pode representar um trauma para adolescentes sem acompanhamento terapêutico

Texto: Giovanna Carneiro e Lenne Ferreira | Arte: Fran Silva

A estudante Yasmim Maria tem 18 anos e no mesmo mês perdeu três pessoas próximas mortas por tiro, entre elas um tio e um primo. “Quando aconteceu isso tudo me doeu muito por eu não esperar que isso fosse acontecer, estava me aproximando do meu ex e foi justamente nesse momento que ele morreu. Quando meu tio e meu primo foram mortos foi um choque para toda família. Doeu muito, mais do que se fosse uma morte natural”.

A perda precoce de amigos e familiares requer cuidados que a maioria dos jovens da periferia recifense não tem acesso. “O ideal é que o jovem seja protegido e apoiado pelas perdas que porventura ele venha a ter. Um jovem que não é da periferia vai contar com uma estrutura para lidar com as perdas que vai permitir que ele se reorganize mais rapidamente e siga um caminho da saúde mental de uma maneira mais tranquila e mais rápida”, pontua a psicóloga Alissandra e continua: “Enquanto que um jovem da periferia, diante de uma perda por violência, que é um luto muito mais grave, além do sofrimento pela perda, ele não vai ter um aparato para suportar aquela dor, elaborar o luto de forma saudável e ter sua vida emocional equilibrada”.

Nascida e criada no Totó, Zona Oeste do Recife, Yasmim já acostumou-se com sons de tiro invadindo sua rotina. “Aqui, é muito comum ouvir tiro, então a comunidade onde moro mudou muito as coisas. De um ano para cá teve muito tiroteio. Às 0h da noite não tem mais ninguém na rua, as pessoas evitam sair por medo”, comenta a jovem, que está no último ano do Ensino Médio.  Desde pequena, ela convive com uma dinâmica atravessada por rebeliões no presídio que fica há alguns metros da sua casa. 

A política de combate às drogas aparece como o principal vetor para a violência armada na periferia recifense. Maria Camila, 19 anos, moradora da Vila São Miguel, no bairro de Afogados, tem uma trajetória de vida atravessada por conflitos armados que já vitimaram milhares de jovens da sua comunidade. “Aqui é assim. Quase todo dia morre um”. A disputa pelo comando do tráfico na região é histórica e motiva diversas investidas policiais, além de conflitos entre forças que tentam dominar o comércio de drogas. Toque de recolher é algo com o que ela convive desde a infância. Mas que não se acostumou. Camila perdeu dois amigos assassinados. O primeiro caso ela ainda tinha 16 anos. “É uma dor imensa. Nem consegui ir ao enterro me despedir porque não tinha passagem”, lamentou. 

A intensa disputa pelo domínio de territórios e a política ostensiva contra o tráfico de drogas afeta no dia a dia de bairros socialmente vulneráveis onde vive uma maioria preta. Para Julia Bueno, que é psicóloga e integrante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa), “a guerras às drogas antes de tudo tem um cunho racista” e por isso é responsável pelo grande número de mortes da juventude negra. “A maconha foi proibida no Brasil junto com vários outros costumes e tradições do povo preto, como a capoeira. A gente fala muito sobre o racismo ambiental e isso acontece também quando pensamos na guerra às drogas, porque alguns territórios são mais violentados pelo Estado do que outros, a periferia é um lugar de violência policial. O Estado decide quem morre ou não e usa a guerra às drogas para matar esses jovens”, declarou a psicóloga. 

Para a ativista, a guerra às drogas não vai resolver a questão do consumo e comercialização. “Esse problema é uma questão de saúde, uma questão de racismo, as vidas de pessoas negras e periféricas precisam ser valorizadas e os policiais precisam ser punidos. Além disso, é preciso garantir a integridade dos jovens que vivem em cárcere, porque não é apenas a morte o problema do racismo, é também a situação precária da população carcerária do Brasil que é majoritariamente negra”, concluiu Julia Bueno. 

Até 2022, o Instituto Fogo Cruzado não divulgava os dados sobre a raça das vítimas de disparos de arma de fogo em Pernambuco por se tratar de um dado sensível que pouco aparece nas divulgações de portais de mídia e nas informações colaborativas que são analisadas pelo instituto. Além disso, a identidade racial das vítimas é um dado subnotificado e o fato da Secretaria de Defesa Social separar partos e pretos em sua divulgação contribui para isso. “Era um dado que até então não existia, mas foi incluído na nossa base de monitoramento, e para isso nós utilizamos de pesquisa nos perfis das redes sociais das vítimas e também de noticias veiculadas em portais de mídia e comunicação”, atestou Ana Maria Franca. 

Desde o início da gestão da governadora Raquel Lyra (PSDB), em janeiro de 2023, os dados da SDS passaram a trazer as informações sobre a raça das vítimas, além disso, as atualizações sobre os casos de violência, que eram feitas com meses de intervalo, passaram a ser realizadas em dias. 

“Ainda que seja um dado subnotificado, a mortalidade de pessoas negras é algo que se sobressai muito se comparado ao número de pessoas brancas e isso reflete o contexto em que vivemos. A violência armada na Região Metropolitana do Recife atinge principalmente as populações periféricas, nós precisamos analisar de forma micro este problema, por isso, os dados sobre raça são fundamentais para expôr as violências e pensar políticas públicas para solucioná-las”, afirmou Ana Maria Franca. O monitoramento do Fogo Cruzado identificou que, entre os adolescentes mortos por disparos de arma de fogo entre 2018 e 2023, 29 eram negros, 7 eram brancos e 331 não foram identificados. 

Crédito: Instituto Fogo Cruzado

Para a advogada e integrante da Articulação Negra de Pernambuco (ANEPE), Priscilla Rocha, questionar e mudar a política de guerra às drogas é fundamental para diminuir a morte de pessoas negras por disparos de arma de fogo: “Quando pensamos no combate ao racismo é fundamental vincular as políticas de drogas, porque a guerra às drogas afeta diretamente a vida das pessoas negras causando morte nas periferias e encarceramento em massa”. 

“É a guerra às drogas também que fundamenta uma suspeita constante e ativa da polícia contra as pessoas negras e dá o aval e a justificativa para que os policiais assinem essas pessoas sem medo de serem punidos”, concluiu a advogada. Priscilla Rocha também participa do Projeto Oxé, uma iniciativa da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, em parceria com o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop) e ANEPE, que realiza atendimentos jurídicos e psicossociais para as vítimas de racismo. O projeto conta com uma equipe interdisciplinar com advogados, psicólogos e assistentes sociais para o acompanhamento dos casos. 

Para Priscila, o envolvimento das pessoas negras com o tráfico podem estar relacionados com o desemprego, a falta de políticas públicas que garantam o mínimo de direitos e qualidade de vida. “ Isso influencia na forma como as famílias lidam com a morte dessas pessoas. Além disso, o tratamento psicológico é caro, as pessoas não conseguem custear e muitas dessas famílias moram longe dos centros de apoio psicológico públicos disponibilizados pelas prefeituras e pelo Governo do Estado”, reflete ela. 

O Oxé prestou assistência em um caso de violência policial emblemático em Pernambuco: o assassinato do jovem negro Vitor Kawan, de 17 anos, morto por disparos efetuados por policiais militares durante uma abordagem, no dia 11 de dezembro de 2021, no bairro Sítio dos Pintos, Zona Norte do Recife. Vitor Kawan estava em uma moto junto com seu amigo Wendel Alves, de 18 anos, quando foi abordado por policiais do 11º Batalhão da PM-PE. O adolescente levou um tiro e não resistiu. A morte do jovem gerou uma grande comoção pública e mobilizou protestos na sua comunidade. 

Os efeitos emocionais da violência no desenvolvimento cognitivo de adolescentes é abordado na última matéria da série #MentesAoAlvo. Acesse a seguir:

#Especial Mentes ao alvo: “Adeus, menor”

 

 

 

Escrito por:

Afoitas Jornalismo

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