#Especial Mentes ao alvo: “Adeus, menor”

Texto: Giovanna Carneiro e Lenne Ferreira | Imagem: Rafael Brito / Rio de Paz

“Que mundo é esse tão cruel que a gente vive?”, questiona MC Kevin na letra da música “Espera eu chegar”, que virou um hino para jovens favelados que lidam com a morte precoce de outros jovens. A canção, que fala sobre inconformismo e saudade, é trilha sonora para publicações de despedidas nas redes sociais. “Só de pensar que nunca mais eu vou te ver dói, dói, dói”, diz um trecho da canção que revela o quanto episódios de violência deixam marcas invisíveis no cotidiano de favelas de todo o Brasil e na saúde mental da juventude periférica.

De acordo com o Estudo Saúde Mental e Bem-estar de Adolescentes, realizado pela ONG Plan International e divulgado em abril deste ano, que defende os direitos das crianças e a igualdade para as meninas, os principais problemas de saúde mental de jovens têm origem na pobreza, na violência e preconceitos de gênero. 

A pesquisa ouviu 67 adolescentes em grupos focais, sendo 19 no Brasil, 25 na Índia e 23 no Quênia. Entre os jovens de 10 a 19 anos, 15 foram selecionados para fazer entrevistas em profundidade. A pesquisa é parte do Programa Adolescente Saudável, uma iniciativa de investimento comunitário global da AstraZeneca desenvolvida em parceria com a Plan International. Para os/as jovens que responderam à pesquisa os principais fatores que levam ao sofrimento emocional são externos, causados pelo ambiente em que vivem. 

Entre 2018 e 2020, outra pesquisa inédita sobre a saúde mental dos moradores, entre jovens e adultos, de 16 comunidades do Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio, mostrou como a violência armada impacta o cotidiano das pessoas. O estudo, que foi realizado pela organização inglesa People’s Palace Projects e pela ONG Redes da Maré, revelou que 63% dos 1.411 moradores entrevistados têm medo constante de serem atingidos por armas de fogo. O número sobe para 71% quando a pergunta é sobre a possibilidade de alguém próximo ser a vítima dos disparos. Dos entrevistados, 31% afirmaram ter a saúde mental afetada pela violência.

Para a psicóloga Alissandra Cruz, do ponto de vista técnico, todos nós seres humanos estamos propícios a sentir os diversos tipos de emoções. “Os transtornos como ansiedade e depressão, podem ser vivenciados tanto por adolescentes e jovens de classe média alta ou das periferias. Não é o bem material que define se terão ou não uma situação de transtorno”, mas ela reforça que as desigualdades racial e social incidem diretamente no processo de superação desses transtornos. 

De acordo com informações da Prefeitura do Recife, entre os anos de 2020 e 2023, houve uma variação significativa no número de atendimentos nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) para pessoas entre 15 e 24 anos. 

 

Acolhimento Inicial 15 a 19 anos, 20 a 24 anos, apresentados pelos 17 Centros de Atenção Psicossocial no período Jan/2020-Abr/2023. Recife/PE.
Faixa Etária 2020 2021 2022 2023
15 a 19 anos 320 392 447 220
20 a 24 anos 301 248 274 164
Total 621 640 721 384
Fonte: Ministério da Saúde. Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS (SIASUS)

 

Em resposta ao Portal Afoitas sobre os serviços de assistência social e apoio psicológico voltados principalmente para os jovens de periferia e os projetos previstos para fortalecer a assistência à saúde mental, a Prefeitura do Recife afirmou que: “desde 2001, por meio da Lei Paulo Delgado (Lei n° 10.216/2001), a gestão municipal do Recife tem trabalhado, no âmbito da saúde mental, com a rede de cuidado substitutiva, por meio dos Centro de Apoio Psicossocial (Caps)”. Segundo a nota, os direitos dos usuários com transtornos mentais estão assegurados e também “foi redirecionado o modelo de atenção, em que o tratamento se faz em liberdade, considerando o espaço de vida das pessoas e suas relações sociais com a autonomia possível de cada um, sempre priorizando a reinserção social”. 

Ainda de acordo com a PCR, “os Caps possuem caráter aberto e comunitário e são voltados aos atendimentos de pessoas com sofrimento psíquico ou transtorno mental, incluindo os decorrentes do uso de álcool, crack e outras substâncias, que se encontram em situações de crise ou em processos de reabilitação psicossocial. As atividades são realizadas prioritariamente de forma coletiva, articulada com os outros pontos de atenção da rede de saúde e das demais redes”. O órgão destacou o Projeto Terapêutico Singular, que envolve profissionais de saúde, o usuário e sua família. 

Os Caps são compostos por equipes formadas por psiquiatras, psicólogos, clínicos, fonoaudiólogos, pediatras, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, enfermeiros e farmacêuticos. Ainda de acordo com a Prefeitura, atualmente, 131 jovens, de 15 a 17 anos, e outros 183, que têm entre 18 e 24 anos, são atendidos pelos Caps da capital pernambucana. Solicitamos os dados sobre raça desses pacientes, mas não obtivemos retorno. Confira AQUI o número de atendimentos realizados pelos Caps entre Janeiro e Março de 2023.

Alessandra Cruz afirma que a rede de atendimento não dá conta do contingente de jovens que precisam de acompanhamento psicoterapêutico. “O Sistema de Saúde Pública é muito bom, mas do ponto de vista da saúde mental, o SUS deixa muito a desejar. Para se ter uma ideia, aqui em PE, só existe um hospital que pode acolher jovens em situação de emergência psiquiátrica, que é o Hospital Ulisses Pernambucano. E isso é muito crítico quando a gente pensa que o jovem da periferia não tem esse suporte. O jovem da periferia não tem acesso a um processo de psicoterapia, por exemplo, para cuidar ou evitar um transtorno. Além disso, no caso de jovens da periferia, eles estão muito mais suscetíveis a fatores de riscos, como ausência de uma estrutura familiar, exposição à violência, a falta de cuidado na proteção de sua vulnerabilidade”.  

A advogada Priscilla Rocha, da Anepe, também chama a atenção para as consequências psicológicas que as famílias das vítimas de bala enfrentam e a dificuldade em procurar e conseguir apoio: “Infelizmente, é muito difícil as pessoas negras procurarem ajuda psicológica porque há uma naturalização das mortes de pessoas negras por disparos de arma de fogo, principalmente daquelas que se envolvem com o tráfico. Então, muitas vezes os familiares se frustram, por achar que poderiam ter salvado aquela vida, mas falharam, ou também fazem de tudo para abafar o sofrimento que estão sentindo por aquela perda, porque pensam que a morte ocorreu devido a uma escolha errada que a pessoa fez”

Mesmo após três anos da morte da amiga, Maria ainda lembra dos momentos que vivenciou ao seu lado. “A gente era muito junta. Onde uma tava, a outra tava também. Nunca vou esquecer dos nossos momentos”, comenta a jovem, que ainda guarda na memória a imagem do corpo da amiga ensanguentada no chão cercado por curiosos e comentários de julgamento. De lá para cá, no seu bairro, inúmeras outras mortes por armas de fogo impuseram luto para outros jovens que, como diz a canção de MC Kevin, acreditam: “Cria não morre. Cria vira lenda”.

Escrito por:

Afoitas Jornalismo

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