Uma árvore bonita

Luedji Luna apresentou seu EP “Mundo”, parceria com DJ Nyack, e espalhou sementes de revolução e fé pelo Recife

Cantora baiana fez primeiro show aberto no Recife no Palco da Rádio Frei Caneca (Foto: Camila Leão/PCR)

Texto: Lenne Ferreira

Luedji Luna é uma árvore bonita, um pé de fruta-fé. Dessas frondosas, com muitos galhos e a copa mais alta, mas com as raízes bem fincadas no chão. Tal qual uma árvore robusta e vivaz, ela consegue alimentar muitas e muitos com seus frutos-canções. E fornece o abrigo necessário para descansar dos dias de luta e dessa resistência que virou condição única de existências pretas. No show que trouxe para o palco da Frei Caneca FM, no domingo (16), primeiro encontro com o Carnaval pernambucano, Luedji liberou oxigênio, refrescou do mormaço. Como árvore que é, limpa do ar impurezas como o racismo, que intoxica nossa vida em sociedade e ainda dividiu a luz que perpassa as folhas dos seus galhos com o público que lotou a Praça do Arsenal para sentar bem embaixo de sua sombra.

A primeira vez que ouvi a voz de Luedji foi numa noite de muito trabalho acumulado. Eu tava bem cansada e sonolenta quando o YouTube fez a sugestão com base no que já ouvia diariamente: música de mulher preta. Ela surgiu de branco cantando “Um corpo no mundo”. Parei tudo para ver o clipe: “Atravessei o mar, um sol na América do Sul me guia”, diziam os versos que me atravessaram de tal forma que resolvi, ali, pôr em prática uma ideia antiga. Há algum tempo, me dedico a pesquisar trabalhos de cantoras e compositoras negras. Luedji Luna me inspirou a montar um projeto pessoal chamado #FaixaPreta, um set especial que eu toquei poucas vezes em festinhas de amigas e que tenho como alento para os dias em que tudo que a gente queria era não ter de resistir. Tipo: só acordar de boa, se pá fazer safadeza gostosa (sozinha ou acompanhada), tomar um café da manhã e ouvir as canções preferidas. O ativismo antiracista não dá trégua e toma nosso tempo de viver coisas simples. Eu luto para ter um dia sem precisar resistir. Ouvir Luedji é isso: “Acalanto”.  

Não foi a primeira vez que vi Luna cantar ao vivo. Ela esteve no Recife pela primeira vez como atração do Festival No Ar Coquetel Molotov, em 2018. Eu estava acompanhando outras artistas e perdi uma parte do show, mas lembro que fiquei paralisada com sua imagem no palco, com a leveza e, ao mesmo tempo, a força de sua presença. Tava longe, mas dava para sentir a vibração da sua voz. Neste domingo, eu, que sempre prefiro ver show do chão, assisti a apresentação do projeto “Mundo” de cima do palco. A ideia era descer após umas duas músicas, mas não foi possível tirar os olhos e os ouvidos dela. A gente se encontrou bem antes, à porta do bakstage. Ela usava um vestido marrom folgado e uma tiara de búzios que envolvia seu rosto. Longe de uma postura de estrelismo que costuma pairar nesses ambientes, Luedji chegou com sorriso no rosto. Foi receptiva com todos e todas. E falou um pouco sobre sua relação com Pernambuco:  “Recife foi um território que me recebeu bem e sempre me senti bem chegada. Mesmo antes de vir tocar no Coquetel Molotov, eu já me identificava com a cidade e tinha amizades próximas”, contou.

“A música daqui me atravessou muito cedo. Na fase da adolescência, conheci o Movimento Mangue Beat. Escutei muito Nação Zumbi, Mundo Livre, Cordel do Fogo Encantado. Pernambuco sempre foi um Estado que eu prestei atenção por me identificar e entender que é um lugar tão preto quanto o meu. Tocar aqui era uma vontade e um desejo, uma demanda não só do público mas minha também de vir para essa terra e que bom que aconteceu e que bom que foi no Carnaval”.

Majoritariamente formada por pessoas pretas, a platéia interagiu e se emocionou em vários momentos do show
Foto: Camila Leão/PCR

E que bom que o público recebeu Luedji com emoção nos olhos. Dava para ver nas primeiras fileiras, pela expressão dos rostos. Muita gente preta saiu de casa, das quebradas mais distantes da cidade para se deliciar com os frutos gerados pela filha de Orlando e Adelaide, ambos militantes do movimento negro de Salvador. Ela começou a compor aos 17 anos. Estudou Direito, mas, para o nosso bem e dela também, dedicou-se à música. Ouvi de amigos de Salvador que Luedji circulou bastante por bares de bairros como o Rio Vermelho, onde acontece a tradicional festa de Iemanjá. Fez história ao fundar projetos como M.O.V.A, um coletivo de compositores, e integrou o Bando Cumatê, grupo que se dedicava (ou se dedica) à pesquisa, difusão e fomento das manifestações artísticas tradicionais da cultura brasileira. Inevitavelmente, a origem familiar e os processos com os quais esteve envolvida ao longo de sua vida influenciaram na estética do seu trabalho, que revela uma relação profunda com as mais diversas camadas da música preta: ritmos afro-brasileiros, R&B, Blues, Jazz, MPB.

“Banho de folhas” ganhou uma versão remixada pelo DJ Nyack (Foto: Camila Leão)

No centro da capital pernambucana, Luedji cantou flores e revolução. Seu caule é forte. Tem fundamento. “Eu sou um corpo, um ser, um corpo só. Tem cor, tem corte a história do meu lugar”, diz em “Um corpo no mundo”, hit com mais de dois milhões de visualizações no YouTube. Ao entender seu lugar, o que a identifica enquanto gente, mesmo dentro de um contexto de deslocamento transmigratório africano forçado, Luedji nos fala sobre a importância de caminhar na nossa própria direção, de (re) encontro com as nossas raízes. Afinal, como combater o racismo longe do que nos fundamenta? Talvez, ser nossa própria embarcação seja sobre nos livrar das amarras racistas que nos colocam na prateleira mais barata do mercado. É muito mais do que resistir. Se reconhecer, juntar as pontas da nossa existência deixadas do outro lado do atlântico. É sobre se tornar preta (o).

Acompanhada pelo DJ Nyack, um monstro nas pickups que já foi apadrinhado por nomes como KL Jay (Racionais MC’s), a Luedji-árvore emprestou seus galhos para dois outros grandes talentos que também participam do EP “Mundo”: MC Stefanie e Zudizilla. Generosidade parece outro atributo da cantora, que fez questão de abrir espaço no seu show para dois artistas que representam a atual cena Rap brasileira. Ambos cantaram músicas autorais. “Aproveita esse público imenso para cantar para eles também”, brincou ela. O ponto mais alto da performance em quarteto se deu na interpretação de “Banho de Folhas”, que ganhou uma versão remixada intercalada pelas vozes dos dois MC’s e Luedji.  Uma performance dinâmica e ousada do ponto de vista da mixagem de elementos sonoros mesclados pelo Nyack. 

Luedji não cantou uma das minhas preferidas “Eu sou uma árvore bonita”. Vi quando ela perguntou à produção do palco se tinha mais tempo. Achei que ouviria no final do show. Escolheu “Lodo” para encerrar a apresentação porque é preciso ser árvore sem deixar de ser trovão, sem deixar de ser sal e “abraçar o mar”. Entender que em meio à tempestade mais torrencial, há de se erguer um trovão-justiça, daquele que ninguém pode conter, “nem capataz… nem as políticas uterinas de extermínio dum povo que não é reconhecido como civilização”. Antes de se despedir, Luedji evocou a força das suas ancestrais, fez o pelo do braço de cada preto e preta ali presente arrepiar. Tem coisa que só mexe com os sentidos de quem sente o racismo na pele e em todos os órgãos do corpo. É sobre “dororidade”, empatia entre mulheres negras gerada pelo reconhecimento de suas dores comuns, como definiu a ativista Vilma Piedade. A cura também é um processo coletivo que envolve “iguais”. Quando Luedji desceu do palco, deixou espalhada as sementes dos frutos que compartilhou. Sementes de cura que ão de fecundar outros pés de fruta-fé para gente repousar sem ter de resistir. Epahey oyá!

Escrito por:

Afoitas Jornalismo

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