Um Museu afrobrasileiro no Centro do Recife

Texto: Giovanna Carneiro | Edição: Lenne Ferreira 

Otávio Francisco dos Santos. Começo esse texto evocando o nome de um escultor brasileiro, que, assim como muitas lideranças e referências artísticas do povo negro, morreu antes de ser devidamente reconhecido pelo seu trabalho. Homem negro e morador do Subúrbio Ferroviário de Salvador, Otávio Francisco – conhecido como Ótávio Bahia, esculpiu máscaras africanas que retratavam orixás, homens e mulheres negras, obras admiráveis e que ganham ainda mais encanto quando pensamos no seu potencial afrodiaspórico. 

Curiosamente, Otávio Bahia não era praticante de nenhuma religião de matriz africana e também nunca visitou nenhum país da África. Suas obras foram produzidas através de referências que o escultor ouvia das pessoas que solicitavam a confecção das artes em madeira. Ao encarar o trabalho de Bahia é difícil não imaginar uma explicação sobrenatural para que a execução das obras tenha acontecido com tanto detalhe e maestria. 

 

A explicação para o talento e inteligência de Bahia, na verdade, já foi exposta por Lélia Gonzalez há alguns anos. Em um de seus escritos sobre a “chamada cultura brasileira”, a pensadora feminista negra fala sobre os aspectos de manifestação da africanidade em nossa sociedade e usa as noções de consciência e memória para identificar as diversas formas de rejeitar ou integrar as manifestações culturais brasileiras que são fruto da diáspora africana. De acordo com Lélia, a consciência seria “o lugar do conhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento, e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente”. Já a memória seria justamente uma oposição desse saber e se apresentaria como  “o não saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção”. 

Penso que Lélia nos provoca a pensar a africanidade que existe em nós, homens e mulheres negras brasileiras, que estamos em um constante exercício de retorno a nossa terra mãe África. Além disso, a intelectual negra defende um saber que está além das barreiras da academia e que, na verdade, encontra sua maior potencialidade em uma memória ancestral, marginal, periférica, negra. Afinal, a academia demorou e ainda demora anos para legitimar a grandiosidade de nossas produções. O reconhecimento tardio aconteceu com Otávio Bahia, aconteceu com Lélia Gonzalez e segue acontecendo com tantas outras e outros filhos/as da diáspora.

Muafro Recife

Bom, se você chegou até aqui deve estar se perguntando o porquê de toda essa reflexão e da escolha de tratar da vida e obra de Otávio Bahia. Então deixa eu explicar. Ao visitar o Museu de Artes Afro-Brasil (Muafro) Rolando Toro, localizado na Rua Mariz e Barros, no Centro do Recife, fiquei surpreendida com as obras de Otávio Bahia. Desde então passei a me questionar porque só sabemos da existência do artista e de sua importância para o museu quando entramos na sala de exposição e vemos uma parede com referências a sua vida e seu trabalho. 

A minha expectativa era conhecer aquele que dá nome ao museu: Rolando Toro. Chileno, professor, psicólogo, antropólogo, poeta, pintor e criador de um importante sistema de integração e desenvolvimento humano, a Biodanza. Em suas visitas ao Brasil, Toro conheceu o trabalho de Otávio Bahia e logo se encantou. Criou amizade com o escultor e criou um grande acervo com as obras que comprou. 

“O Muafro foi se constituindo a partir do acervo de Rolando. A gente conseguiu uma parceria com um amigo italiano que comprou o espaço para ele [Rolando], para que a gente pudesse fazer a gestão de um museu vivo, com oficinas, seminários, aulas de Biodanza e a participação de artistas e coletivos que fazem atividades no prédio. E claro, uma sala que abrigasse o acervo”, explicou a psicóloga social e diretora do Muafro, Lúcia Helena Ramos. Apesar de não morar no Recife, o antropólogo Rolando Toro tinha uma paixão pela cidade e a visitava com frequência, além de ter desenvolvido seu trabalho com a Biodanza na capital pernambucana.

O espaço fica no prédio que abriga o Museu, localizado no Bairro do Recife Antigo. O cômodo onde estão expostas as obras de Otávio Bahia está aberto para visitação de terça à domingo, das 13h às 17h. As demais salas do prédio podem ser alugadas para a realização de eventos, e oficinas e atividades acontecem no local com certa frequência. O prédio é mantido de forma independente e, por isso, há uma taxa para manutenção que é cobrada na entrada do museu. 

Apesar de levar o nome do “chileno apaixonado por Pernambuco”, o Muafro é um espaço de arte e cultura voltado para a negritude e para tradições de matriz africana. Esta característica do museu está marcada tanto na exposição fixa de Otávio Bahia, quanto nas atividades que costumam ser realizadas no local, além de ter pessoas negras na construção e na manutenção do espaço, como a diretora Lúcia Helena e o montador e guia da exposição – que me recebeu com bastante simpatia e discernimento – , Pedro Leite.

“Nós temos um perfil afro brasileiro e temos conseguido agregar esse diálogo em nossas ações. Reabrimos o museu após a pandemia com o acervo fixo, uma exposição de fotografias de Naná Vasconcelos – com registros que foram feitos em uma oficina que Naná deu aqui no nosso espaço -, e também tivemos um desfile de moda afro. Nós também temos um café que tem um cardápio de comidas afro brasileiras e que geralmente funciona nos dias que temos eventos. Então, nós estamos sempre buscando a referência afro-brasileira para tudo e priorizamos atividades voltadas para a negritude”, afirmou Lúcia Helena Ramos. 

Ter um museu afro no Centro do Recife é bastante significativo para pensarmos na disputa cultural e narrativa que precisamos criar em um país racista como o Brasil e em Pernambuco, um território por onde iniciou a colonização brasileira e foi berço de grandes batalhas e revoluções pela emancipação e contra o domínio português. Cabe também refletirmos que o nosso acesso à arte negra, muitas vezes, está em outros espaços que não são os museus, como o grafite e a arte de rua, justamente porque não é algo fácil para artistas negros/as periféricos bancar os custos com uma exposição em um local fixo. A ocupação de museus e galerias de arte ainda é um privilégio da branquitude. Contudo, nossa excelência cultural e ancestral (fruto da memória defendida por Lélia Gonzalez) possibilita a construção de um acervo vivo e que perdura para além da literatura formal ou de espaços físicos. A contribuição do povo preto é a base que alicerça a história e identidade brasileiras.  

Escrito por:

Afoitas Jornalismo

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