Silenciamento social

Na continuação  da reportagem, “A pena por amar um preso”, histórias de mulheres que precisam silenciar para ser “aceitas”

O brinco graúdo e a maquiagem colorida de Patrícia*, 22 anos, parecem ocultar uma verdade que pode representar a ruptura com a família. Há um ano, ela visita o pai dos  dois filhos, acusado de homicídio, na unidade Juiz Antônio Luiz, no Complexo Prisional do Curado, Zona Oeste do Recife. Mas não tem com quem dividir o peso da sacola nem da rotina atribulada. “A minha família não sabe que ele está preso. Ainda não tive coragem de contar”. O julgamento dos familiares  e sociedade talvez seja o maior desafio com o qual se depara as mulheres que visitam detentos. O receio da punição do convívio social faz com que muitas silenciem suas dores e dificuldades.

Patrícia optou por manter a prisão do companheiro em segredo. Faz um ano. “Digo que ele viajou para estudar fora”. Faltam sete para que seja libertado e ela ainda não sabe como vai manter a justificativa de sua ausência. Até lá, todos os domingos, será ela quem não estará presente nos almoços de família ou chope com as amigas na praia.

A falta de apoio era a mesma dificuldade enfrentada por Juliana*, de 27 anos. Entre as entrevistadas de um domingo nublado, era a única com diploma. Atua como professora em Feira Nova, há 77 km do Recife. O companheiro acaba de ser transferido para a unidade Frei Damião de Bozzano, dentro do Complexo do Curado. Juliana enfrentou quase duas horas de ônibus até chegar ao local. Antes de entrar na unidade que acabara de conhecer, buscou informações sobre os valores para guardar os objetos que são proibidos no interior do presídio. Os comerciantes cobram R$ 2 para velar aparelhos celulares até o fim da visita.

Ao contrário das outras visitantes, a professora não carregava sacolas nem reclamou qualquer situação de preconceito. Disse que entendia o julgamento da sociedade e dos parentes (afinal, “são bandidos, né?”) e estava ali para assinalar sua última visita ao pai da filha de um ano, também preso por homicídio. Os familiares dela não aceitam que continue a relação. Mesmo gostando do companheiro, Juliana seguiu adiante na decisão de pôr um ponto final na história de dois anos. “É uma vida muito sofrida. Depois que ele sair, a gente volta a conversar. Meus irmãos não aceitam e eu não quero mais comprar briga com a minha família. Preciso deles pra criar a minha filha”.

Além da falta de apoio dos familiares, perder o emprego por causa da ligação com um detento é outra preocupação recorrente entre as mulheres, independente do tipo de relação que tenham com o presidiário. “É a exclusão da exclusão. Uma espécie de encarceramento social invisível que é pior do que cumprir a medida dentro do presídio”, acredita Wilma Melo, que já teve um familiar encarcerado e sentiu na pele a discriminação, que hoje combate.

Juliana, que estava muito apreensiva em ser reconhecida pela família, topou conversar, mas trocou de blusa para fazer a foto, tirou acessórios até. Na escola onde ela trabalha ninguém sabe que seu companheiro cumpre pena. “Eu seria demitida. Quem vai querer que o filho estude com a mulher de um presidiário?”.

“É a mulher quem tira a cadeia do homem”

Segundo a especialista do Serviço Ecumênico de Militâncias nas Prisões (SEMPRI), Wilma Melo, a mulher é a maior responsável pela manutenção de um preso. A afirmação encontra amparo num ditado muito conhecido entre a população carcerária: “É a mulher quem tira a cadeia do homem”. “Tirar a cadeia” é a maneira de falar que um homem só consegue cumprir pena em regime fechado  graças à força de trabalho e dedicação de mães, avós, tias, irmãs e até filhas dos detentos.

Esse contexto se reproduz em estados como São Paulo que, até 2014, concentrava a segunda maior população carcerária do país. No desenvolvimento de sua dissertação de mestrado, “Mulheres na prisão: entre famílias, batalhas e a vida normal”, a antropóloga Larissa Bouças,  da Universidade de São Paulo (USP), pôde observar a importância das mulheres para a sobrevivência dos homens que cumprem pena em regime fechado.

“Um ponto que vem sendo discutido sobre a presença dessas mulheres no sistema prisional em São Paulo é que elas são as grandes responsáveis pelo abastecimento das prisões: alimentos, roupas, pasta de dente etc”. São elas também que pagam dívidas de drogas, aluguel de celas e outras necessidades que permeiam as relações dentro de uma unidade prisional. Larissa aprofunda sua pesquisa na tese intitulada “Nem dentro, nem fora: gênero, trânsitos e associações de mulheres que circulam pela prisão”que ainda não foi concluída. (Confira a íntegra da entrevista realizada com Larissa Bouças na continuação da série)

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“Se eu não trouxer, como ela vai conviver com o pai?”, Rosenalva Faustina, mãe de detento e avó de Estefany, de 3 anos.

A presença constante das mulheres nos presídios masculinos deveria ser apoiada pela sociedade. Afinal, como ressocializar e reintegrar um infrator à sociedade sem a contribuição e o suporte da família? São as mulheres que levam os filhos, a comida preparada com afeto, as notícias sobre o mundo externo. “Se a gente não vier, eles morrem de depressão”, diz Roberta Manuela, de 21 anos, grávida de cinco meses do segundo filho, que frequenta o Complexo do Curado há quase dois anos. “Já terminei várias vezes porque é uma vida difícil. Mas sempre volto”, conta ela, que estava ansiosa para mostrar a nova pintura do cabelo para o companheiro.

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Roberta está grávida do segundo filho e diz que já tentou se separar, mas sempre volta.

“As pessoas precisam olhar de uma maneira diferente para essas mulheres. Elas não representam a criminalidade nem o delito. Elas fazem parte da nossa sociedade e frequentam os presídios por uma questão de necessidade. Elas não podem ser desprezadas, incompreendidas porque cumprem o papel que o Estado não cumpre”, acredita Wilma Melo.

Dona Creuza não aprendeu a calar. Catadora de material reciclável, aos 65 anos ela diz que não tem o que esconder e não perde um domingo de visita. O neto está na unidade Juiz Antônio Luiz há quatro anos e “ainda nem foi julgado”, repete, várias vezes. Desde que foi preso, só conta com a presença da avó, que chamou nossa atenção por equilibrar uma pesada sacola com mantimentos e uma bandeja de ovos intacta. “Eu venho de longe, mas os ovos estão inteiros. Pode conferir aí”, diz, com bom humor.

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Creuza passa a semana catando material reciclável, mas não perde um dia de visita. Sua esperança é que o neto seja ao menos julgado pelo crime que está sendo acusado.

Dona Creuza inicia o trajeto até o Complexo Prisional do Curado em São Lourenço da Mata, onde mora sozinha. Mas diz que não acha ruim. Qualquer sacrifício vale para poder passar algumas horas perto do homem que viu nascer e crescer assim como os outros 13 netos. “Eu jamais abandonaria meu sangue sozinho num lugar como esse”, garante. Aos domingos, quando passa na rua e alguém pergunta se ela vai passear,  não se hesita em responder: “Não. Tô indo para o presídio. Pronto. Aí não perguntam mais”. Dona Creuza sabe que não tem do que se envergonhar.

*Nome trocado para preservar a identidade da entrevistada

Texto: Lenne Ferreira
Fotos: Fran Silva
Edição: Lydia Barros

Escrito por:

Afoitas Jornalismo

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