Maria Clara de Sena, quadrille e estratégias culturais de uma mulher trans negra e indígena nordestina refugiada no Canadá

A transfobia expulsou Maria Clara de Sena do Brasil, mas não conseguiu tirar o Brasil e a cultura nordestina dela, que faz da arte um lugar de libertação

Texto: Kalor Pacheco | Edição: Lenne Ferreira

“Eu sou fruto de uma rejeição. Hoje, eu vivo fora do Brasil por conta dessa cultura de que as pessoas precisam ser perseguidas e mortas”.  A frase é de Maria Clara de Sena, 43, camaragibense conhecida Brasil afora: artista da cultura popular, assistente social, ativista transexual, hoje asilada no Canadá, após sofrer ameaças de morte por ter denunciado a violência sexual contra travestis e homens gays em presídios pernambucanos. Primeira mulher trans no Mecanismo de Combate e Prevenção à Tortura de Pernambuco, aparato de política internacional da Organização das Nações Unidas – ONU no enfrentamento à violações de direitos humanos em unidades penitenciárias, e contemplada no 21º Prêmio Cláudia, em 2020, Clara começou a construir o seu empoderamento décadas atrás, dançando quadrilha no município de Camaragibe, onde viveu sua infância e adolescência antes de vivenciar de uma vez por todas a sua identidade de gênero, feminina. “Eu sou de uma família muito conservadora. Eu era muito limitada dentro de casa, porque nas minhas primeiras fases de idade até a minha forma de andar incomodava meu pai”, conta. 

Ainda no seu município de origem, Camaragibe, situado no Grande Recife, Maria Clara conheceu pessoas as quais considera como as suas primeiras assistentes sociais. Mulheres negras comprometidas com a cultura, a educação e a saúde física e mental do povo: a primeira delas transexual, Jesus, e também Josenita Duda Ciríaco, coincidentemente ambas falecidas no ano de 2020, em meio a pandemia de coronavírus que, no Brasil, matou quase 680 mil brasileiras, brasileires e brasileiros. A partir de um levantamento da Rede de Pesquisa Solidária, lançado no final de 2021, e também em um relatório da ONU Mulheres, analisa-se que as mulheres negras foram mais infectadas e levadas à óbito pela Covid-19 em 2021. Os números relativos às pessoas trans não foram contabilizados pelo Ministério da Saúde, uma vez que as fichas dos hospitais não solicitam a informação acerca do gênero da paciente, confome aponta Duda Salabert na coluna do Nexo Jornal.

Josenita Duda, militante feminista e bissexual pioneira na formação de diversos movimentos sociais no Estado (a exemplo do Centro Comunitário Vivendo e Aprendendo, da ONG SOS Corpo e do Partido dos Trabalhadores – PT), falecida em 2020 foi uma de suas primeiras referências. Chegou a acompanhá-la, quando bem jovem, em um dos prostíbulos da cidade em que viviam, para falar sobre educação sexual e prevenção à Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST ‘s). “Hoje, com a consciência que eu tenho, com as comunicações que eu tenho, eu posso entender que Nita foi minha primeira assistente social”, destaca Maria, que antes tinha sua vida vigiada pelos preceitos LGBTfóbicos da família tradicional cristã, mas que entendeu cedo que não havia pecado algum em ser travesti, ou prostituta. Quando visitou os prostíbulos, bem nova, aprendeu: “na verdade, cada uma dessas mulheres que Nita me apresentou nada mais é do que uma psicóloga, uma coach, uma terapeuta em que muitas vezes os homens com uma vida degradada chegavam para desabafar o que não conseguiam em suas próprias casas”.

“Jesus é uma travesti negra e indígena”

Desde muito nova, o olhar aguçado para os direitos humanos resultava da observação do cotidiano da comunidade do Alberto Maia, bairro onde morava Maria e sua família. E também Josenita, que certa vez a surpreendeu quando defendeu uma travesti. “Essa menina sofria demais, era apedrejada, e Nita, como Jesus Cristo, dava as costas para proteger essa menina de levar pedra. Ela acompanhava todos os dias Maelve até a parada de ônibus para que ela fosse com segurança ao bairro de Boa Viagem, para se prostituir”, lembra. 

Um encontro fundamental para formação pessoal e política de Maria foi com Jesus, nome antigo de Watuzy Brasil, ícone da cultura popular camaragibense, também travesti, multiartista, quadrilheira e dançarina com quem ela teve o prazer de trocar diversos aprendizados, e que também morreu ano passado, em virtude da COVID 19. “Jesus é uma travesti negra e indígena”, Maria Clara pondera, após refletir sobre o lugar ocupado pela amiga de infância na história de várias outras pessoas LGBT. “Na minha primeira infância eu tive uma bruxa (como carinhosamente chama Josenita Duda) mas também eu tive Jesus. Na outra ponta, eu encontrei Jesus, Watuzy Brasil, eu reforço o nome Jesus porque, assim, o Jesus que a gente vê hoje no Brasil é um Jesus carrasco. Eu não quero entrar na religião, mas as pessoas falam: ‘eu vou chamar de Jesus uma mulher trans preta, come on, o que tem a ver?’ Mas tem tudo a ver, porque Jesus é energia”, reflete Clara.

Ativismo por consequência 

Apesar dos silencioamentos impostos pela sociedade, Maria Clara não se calou diante do genocídio da população LGBTQIA+

Quando trabalhou como funcionária pública no Mecanismo de Combate e Prevenção à Tortura de Pernambuco, aparato da ONU, percebeu que a maioria da população presente era formado por pretos e indígenas. A edição 2022 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública revela que 67,5% da população encarcerada se autodeclara negra e 29% branca. “Vejo que tem várias Marias, várias Kalor, vários Kadu, percebo o que acontece nesse processo. O que leva essas pessoas ali pra dentro é o mesmo que aconteceu comigo, é a margem que leva a gente pra dentro. Eles foram nos tirando a possibilidade de cantar, dançar, entender que a relação é a troca. E vi que dentro do sistema prisional tinha várias pessoas que tinham dançado frevo, caboclinhos, e foi tirado da vida delas porque se você não tiver uma universidade você é um marginal.”

Maria também percebeu, no atual no Complexo Prisional do Curado, a violência às quais as detentas trans e travestis eram submetidas, conforme contou ao telejornal canadense Focus Portuguese: “toda vez que acontecia uma rebelião, eram elas que tinham as suas cabeças cortadas. Eram elas que passavam por todas as condições desumanas no sistema prisional, e foi onde eu me debrucei.”

“As pessoas não conseguiam ver uma travesti negra de candomblé sendo autoridade dentro do sistema prisional, porque as pessoas me viam como detenta, e não como  servidora pública. E em uma das visitas eu pedi respeito a um agente penitenciário e ele disse que não ia me respeitar por eu ser travesti e negra”, denuncia, acrescentando que após isso o agente apontou um revólver para cabeça dela. “Então ouvi de repórteres que estavam no Brasil para fazer um documento sobre o meu trabalho que eu não podia viver no país, que eu ia morrer, e foi quando falaram de refúgio. Eu não sabia do Canadá, mas o promotor falou, ‘Maria Clara o melhor país para você viver em refúgio é o Canadá’.” O ACNUR (Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) estima que aproximadamente 40 países reconhecem solicitações de asilo cujo fundado temor se relaciona a perseguições motivadas por orientação sexual, identidade de gênero e/ou status sexual.

Houve muita luta para que Maria Clara de Sena conseguisse asilo no Canadá. Inicialmente, não falar o idioma inglês foi um forte obstáculo. “Cheguei aqui no Canadá com a mala e o papel, sem saber o inglês, pois sou de uma comunidade completamente pobre, então a gente não tinha acesso ao inglês”, recorda-se. Devido a isso, sua primeira audiência em que pedia proteção, não aconteceu como ela esperava; na segunda oportunidade, deferido o seu pedido, a juíza perguntou, incrédula, como Maria teria conseguido sobreviver no Brasil, país que até então mata mais transexuais e travestis no mundo. 

Vivendo há cerca de sete anos asilada no Canadá, Maria Clara hoje atua em uma instituição da Igreja Anglicana, e deseja contar a história de Jesus Cristo relacionando com a vida da quadrilheira travesti que tanto a ensinou. “Na conversa que estou tendo com a igreja anglicana no Canadá, ele diz que Jesus é uma pessoa. Uma pessoa que poderia ter sido trans, que poderia ter tido “N” coisas. Eu falo dessa mulher trans que disse pra mim: ‘Maria Clara, você tem a quadrilha’. E na quadrilha eu podia expressar a minha identidade de gênero, e podia usar a fantasia para poder me libertar de correntes que aprisionavam não apenas a mim mas também a minha família”. Para Maria está tudo conectado: “Eu entro na quadrilha, a quadrilha me mostra que o primeiro precisa do segundo, o segundo precisa daquele do meio, sabe? Que a vida funciona em círculo, como a gente pega a palha do dendê, como a gente precisa cuidar da palha do dendê, então tudo é muito conectado”.

Arte e insurgência 

“Oxum está viva e vive bem em Toronto” é o nome do espetáculo que Maria Clara protagoniza no Canadá

Atualmente, a artista protagoniza o espetáculo “Oxum está viva e vive bem em Toronto”, premiada ao lado de Suzanne Roberts Smith pelo Nigthwood Theatre de Toronto, companhia feminista de artes cênicas fundada 1979 no Canadá. A divulgação da peça afirma que “cinco artistas femininas celebram a vida e mitologia queer de Maria Clara de Sena” enquanto a atriz bem coloca que seu trabalho busca revelar a sua história a fim de trazer à tona a possibilidade para que outras mulheres trans e pessoas LGBTQIAP+ possam também ver na cultura popular nordestina a possibilidade de melhoria e transformação, como ela aprendeu. Em 2021, o seu projeto Balé T teve por objetivo socializar meninas e pessoas trans de Pernambuco com danças das culturas populares, como o frevo, o maracatu e a quadrilha. “A gente tem que dar consciência e dizer que a gente tinha um mundo antes, e que precisamos continuar lutando. A juventude vai ter que dar conta, entrar na política, entrar na universidade, aprender idioma, escrever um currículo legal.”, indica.

Maria relaciona as manifestações tradicionais como caboclinhos, maracatu, frevo e especialmente a quadrilha como estratégias de sobrevivência da população de ascendência africana e originária nos últimos cinco séculos de colonização. “Eu sempre fui uma pessoa da arte, mas, por um problema estrutural, esse problema colonizador que chegou ao Brasil, a arte foi arrancada de mim, eu precisei entrar na militância e minha veia artística ficou sempre no segundo plano”, desabafa.

Maria Clara de Sena sobrevive por acreditar que é este o seu caminho. “Quando a coisa tem que acontecer, acontece. Eu fui a primeira pessoa da minha família a entrar numa universidade, por mais que eu não tenha concluído, porque o estado me privou (Maria Clara foi estudante de serviço social, mas precisou deixar o país no último período do curso, em consequência das ameaças sofridas); e fui a primeira pessoa da minha família que teve a possibilidade de sair do país, por mais que seja fruto dessas consequências e tal. O que eu acredito é o seguinte: se você quer falar ‘eu sou uma pessoa trans, eu me reconheço como uma pessoa trans’, por mais que você saiba que o país é o que mais mata pessoas transexuais, mas isso vai te fazer bem, você vai ter que sair da caixa”, encoraja.

É suficiente ouví-la, vê-la ou mesmo sentí-la para entender o poder dessa mulher de 1,92 metros que já trabalhou como modelo, dançou quadrilha, defendeu mulheres trans e travestis no sistema carcerário. Maria Clara, apesar das violências já vividas, desde a sua infância, a repressão à sua identidade até as vivências mais recentes de perseguição e ameaça, é doce, amável, cheia de fé e esperança por dias melhores. Assim ela continua a sua ação social, atenta aos direitos humanos das pessoas LGBT do seu lugar, ou seja, sempre ligada ao nordeste do Brasil. Quanto à sua mãe, hoje cada vez mais Maria troca afetos. “Eu sempre falo para minha mãe: quando eu era pequena e a senhora falava ‘tem um jeitinho que não condiz, ah, eu vou bater para consertar’. Hoje a senhora sabe que isso é errado’”, e continua, “hoje ela tá fazendo a tarefinha de casa, minha mãe, com setenta e poucos anos. Toda vez que eu ligo pra ela, ela me chama de Clarinha, toda com carinho que ela quer dar pra mim, uma possibilidade de dizer que ela consegue entender que ela errou, mas que foi culpa do estado que não lhe deu possibilidade’”.

Sonha Maria Clara em conseguir construir, no Canadá, uma casa em que possa receber diversas pessoas LGBTQIAP+, em especial pessoas trans, para que possam trabalhar junto a ela e no país, conquistando assim a dignidade que o Brasil reluta em oferecer, sobretudo quando sabe que o país está na mão de um governo extremamente intolerante. Para se ter ideia, uma pesquisa divulgada pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transsexuais) no início deste ano revela que 140 transexuais e travestis perderam suas vidas em 2021. Nos casos em que se pôde identificar a identidade racial da vítima, as estatísticas apontam que 81% eram pessoas negras. 

“Quadrilha junina socializa e ressocializa”, Maria Clara de Sena

Na brincadeira de tradição junina, Maria Clara pode experimentar seu corpo livre

“Quadrilha junina socializa e ressocializa”, defende Maria. “É algo que conseguiu parar a guerra, algo que chegou no Brasil e transformou. A quadrilha consegue juntar o índio, o negro e o branco, unidos em harmonia. A quadrilha é positiva, mas existe uma quadrilha que luta contra a quadrilha junina, uma quadrilha de gângsteres, que está em Brasília. E tem uma pesquisa da pancocojams que fala justamente isso, abordam arte afro pelo mundo inteiro e quando vão ao Brasil, descobrem que lá também tem quadrilha. Quando os pesquisadores traduzem o substantivo quadrilha para o inglês descobrem que significa ‘gangster, marginal, criminosos, malfeitores’ e vêem que não tem nada a ver com a quadrilha junina. Então precisa separar, trazer um nome diferente, como Quadrille, que é o quadriculado da dança, é a tática de sobrevivência de juntar retalhos que nosso povo desenvolveu”. Baseado nisso, o grupo Trans-Form provocados por Maria Clara provoca a pensar na perspectiva das eleições de 2022, perguntando em formulário: “Quadrille”, a quadrilha junina, ou “quadrilha”, de Brasília?

 

Escrito por:

Kalor Pacheco

kalorpacheco@gmail.com

 @umapinoia