Jéssica, a culpa não é sua!

O luto e a luta solitária de uma mãe para superar a culpa materna pela morte acidental da filha

Texto e imagem: Lenne Ferreira

Quando soube do ato 8M, a comerciante Jéssica decidiu aproveitar o movimento de mulheres que ocuparam as ruas do centro da capital pernambucana. Saiu do seu cotidiano ponto de vendas na Avenida Dantas Barreto para comercializar batata e churros próximo ao Palácio do Campos das Princesas, onde as ativistas encerraram o protesto cobrando da administração estadual mais ações de enfrentamento à violência contra às mulheres. 

Enquanto a governadora Raquel Lyra, que estava acompanhada pela vice Priscila Krause e seus seguranças, prometia criar um comitê com as mulheres negras, que estão representadas por apenas dois nomes em seu secretariado, Jéssica fazia as últimas vendas e nem conseguia ouvir o discurso. Não é todo dia que ela tem a chance de voltar para casa com a mercadoria zerada como aconteceu. Antes do ‘corre’ de guardar a carroça e pegar o ônibus de volta para Salgadinho, em Olinda, onde mora com três dos seis filhos que pariu, Jéssica ficou feliz por poder dar uma entrevista sobre o ato que participou indiretamente pela primeira vez. Ela, que hoje tem 32 anos, conheceu a violência doméstica ainda na adolescência. 

“Casei muito nova e já sofri tanto que, hoje, não quero mais me relacionar sério com pessoas do sexo oposto”. A decepção com relacionamentos amorosos só não é maior do que a dor que logo viria à tona durante a entrevista. Há dois anos, Jéssica perdeu a companhia de sua filha mais nova depois de um acidente doméstico fatal. Ao sair para ir até uma farmácia, depois da recusa do pai da criança em se comprometer com os cuidados dela, a comerciante precisou deixar o filho mais velho, então com 15 anos, olhando a menina, que estava dormindo. Na volta para casa, soube que a filha havia desaparecido e só a encontrou algum tempo depois desacordada dentro de uma cisterna com água. Mesmo após socorro médico, ela não resistiu e foi a óbito. O trauma deu sinais de não ter sido superado durante a nossa conversa. Ali, no meio de outras comerciantes que a aguardavam, Jéssica não controlou o choro e falou sobre o sentimento de culpa que persegue seus dias e suas noites. “Eu não consigo superar. Lembro dela todos os dias”, contou emocionada. 

Além da perda brusca de sua filha mais nova, Jéssica precisou enfrentar as acusações de negligência que vieram de todos os lados e que causaram mais danos à sua saúde mental. Mais uma vez ela sentiu o peso do machismo que culpabiliza mulheres por meio de frases como “Essa menina não tinha mãe não?”. O acidente mexeu tanto com seu estado emocional que a fez abrir mão da guarda de outros dois filhos para o ex-marido, o mesmo que não olhou para a sua filha por alguns instantes, mas que nunca ouviu: “Essa menina não tinha pai não”. 

A história de Jéssica, a quem precisei acolher e esquecer a gravação do áudio, me acompanhou até em casa. Nenhum repórter sai para a rua sem o coração e é preciso entender que as emoções de um entrevistado também geram efeitos no nosso estado emocional. Iniciei uma pesquisa sobre o luto de mães que perderam os filhos em acidentes domésticos e descobri que Jéssica não está sozinha em sua dor. Numa varredura rápida no Google encontrei dados do Ministério da Saúde registrados pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade Infantil. Entre 2020 e 2021 ocorreram 1.616 óbitos por acidentes domésticos com crianças de 0 a 14 anos de idade, sendo 792 óbitos em 2020 e 824 em 2021. Mas, as poucas matérias que saíram sobre o caso na época do ocorrido se resumiram a noticiar o acidente sem qualquer aprofundamento.

A complexidade do tema foi abordado por Maria Augusta Rocha, doutora em enfermagem pela Universidade Federal do Piauí no artigo “Morte de crianças por acidentes domésticos: desvelando a experiência materna”. O material foi elaborado a partir da coleta de depoimentos de 10 mães que perderam seus/suas filhos/as a partir da pergunta “O que significou a morte de seu/sua filho(a) por acidente doméstico?”. No texto, Maria Augusta apresenta os impactos e os aspectos sociais que circundam essas perdas. “Quando a causa da morte é aparentemente evitável, como no caso dos acidentes domésticos, o enlutamento se torna mais complexo, pois, em geral, a ausência da criança se conecta à culpa, ao sentimento de ter falhado em seu papel de proteção e cuidado, bem como ao medo da ocorrência de novos acidentes no cotidiano”, discorre ela no artigo. 

A publicação alerta que “em razão do caráter repentino, as mães apresentam maior risco de desenvolver problemas de saúde mental, tais como luto complicado, depressão e transtorno do estresse pós -traumático clinicamente significativos, além de ansiedade e uso de medicamentos psicotrópicos”. De acordo com a especialista, ao encararem o cotidiano após a morte do filho, as mães entrevistadas relataram medo, o que acarreta em limitações para sua vida e a de seus outros filhos. “A morte do filho na infância compromete a integralidade do ser mãe, o que indica a necessidade de cuidado sistematizado, humanizado, qualificado e contínuo para a condução adequada dos efeitos emocionais e sociais relacionados com o luto materno. O apoio da família e de sua rede social também pode contribuir para o bem-estar biopsicossocial e espiritual da mãe”, conclui o artigo.

Nas redes sociais de Jéssica, fotos e vídeos da filha demonstram o sofrimento ainda latente

Embora não tenha tempo para participar de coletivos de femininos e entender mais sobre o movimento feminista, Jéssica acredita que atos como o que viu acontecendo no Centro do Recife são importantes para o fortalecimento de mulheres como ela.  Desde que tudo aconteceu Jéssica precisou ser acompanhada por um psiquiatra, que a receitou calmantes. “Eu parei de usar porque me deixava muito sonolenta e eu preciso trabalhar para sustentar meus filhos”. No Whatsapp, ela escreveu: “Eita contagem regressiva para uma linda festa no céu 🙌 e um grande vazio em meu ❤️😭😭😭😭😭”. A comerciante não tem condições de pagar uma terapia para contar com escutas regulares que a ajudem a superar o trauma, além da culpa por não conseguir estar emocionalmente bem para cuidar dos outros filhos, que não contam com pais presentes, mas que vivem sem culpa alguma enquanto ela todos os dias, solitariamente, luta para superar um luto permanente. 

“Jéssica, a culpa não é sua”, repeti antes de me despedir. A culpa é do racismo que nega às mulheres negras como ela condições básicas para viver. A culpa é da falta de políticas com foco na educação sexual, que acarreta em maternidades precoces. É das gestões municipais que não oferecem creches para que mães possam deixar seu filho em segurança. A culpa é dessa educação misógina que exime os homens de assumirem responsabilidades mínimas com seus filhos. A culpa é da falta de programas que garantam empregabilidade para mulheres negras faveladas possam trabalhar com dignidade  e remuneração adequada para estruturar uma casa com a segurança necessária para os seus filhos. Por isso, mais uma vez e quantas vezes forem preciso repetir: Jéssica, a culpa não é sua! 

 

Escrito por:

Lenne Ferreira

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