Dos movimentos sociais até a OAB: Manoela Alves aspira um futuro com equidade social

Assim como Esperança Garcia – primeira advogada negra do Piauí -, Manoela também foi a primeira em muitas posições importantes na história da OAB Pernambuco

Texto: Maya Santos | Edição: Lenne Ferreira | Foto: Helvia Montenegro

Entender e pavimentar seu próprio caminho é comum às pessoas negras que carregam em seu movimento o impulso de promover mudanças estruturais. Nesse sentido, cultivar um terreno antirracista e antidiscriminatório tem sido o propósito da atuação da advogada e docente Manoela Alves, dentro da Ordem dos Advogados do Brasil de Pernambuco. 

Com postura firme e olhar que inspira confiança, Manoela assume um papel desafiador que contraria o destino predestinado a uma mulher negra, lésbica e de terreiro no Brasil. “Para além de estar nos espaços, devemos ocupar politicamente e estar permanentemente questionando as estruturas, oferecendo um olhar de enegrecimento e acredito que só assim conseguimos colocar a OAB-PE como casa da cidadania, por que, além de garantir pluralidade em seus cargos, ela vai de fato refletir sobre a pluralidade da sociedade brasileira”, disse.

Nascida no município de Jaboatão dos Guararapes, filha de Fátima e Manoel, a advogada é especializada em compliance antidiscriminatório – conjunto de normas e procedimentos ligados a governança corporativa que visam prevenir, detectar e remediar práticas discriminatórias de qualquer natureza e criar um ambiente de harmonia e respeito à diversidade – e atua em prol da erradicação do preconceito racial, de gênero, LGBTfobia para, assim, ajudar  na construção de uma sociedade com mais de equidade social. Mas, para conhecer um pouco mais da história dessa afoita do século 21, é necessário voltarmos 15 anos no tempo e refazer os passos que a fez chegar até os dias atuais.  

Partindo dos movimentos sociais até a OAB

A obstinação e percepção estratégica foram as ferramentas essenciais para Manoela chegar, permanecer e concluir o curso superior de Direito na Faculdade Integrada do Recife, graduação  que sempre quis fazer. A jaboatonense criou suas próprias rotas trazendo em sua bagagem as vivências de longa atuação junto a movimentos sociais, sua primeira casa de atuação em direito.  

No Movimento LGBT Leões do Norte, Manoela foi contratada enquanto advogada em 2010, e foi a primeira presidenta lésbica da instituição em 2013. De lá pra cá, permaneceu, mas como militante e hoje assume a posição de vice-presidenta do grupo que, há 20 anos, atua na defesa e promoção dos Direitos Humanos e Cidadania de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,Transexuais e Intersex (LGBTI) em Pernambuco. Além de representar o Leões do Norte no Coletivo de Lésbicas e Bissexuais de Pernambuco.

“Estou como uma das coordenadoras do Comitê de Lésbicas e Mulheres Bissexuais da Secretaria da Mulher do Governo Estado, além de secretária geral adjunta da OAB-PE, com muito orgulho, e sou uma das militantes negras na advocacia em Pernambuco”, declarou a advogada. 

Em um espaço embranquecido, com salas ocupadas por pessoas que tinham, em  muitos casos, uma linhagem da família atuante na área de Direito, Manoela figurava como a única negra da turma. “Na época, sempre tentei estagiar em escritório de advocacia, tentei muito e não consegui, mas, na faculdade, me dediquei muito à pesquisa, extensão e monitoria”, relembrou. 

Debruçada em atividades ligadas a academia, a advogada começou abrir espaço para o debate em favor das lutas de grupos minoritários, buscando fortalecer suas vivências enquanto militante e transformá-las em conhecimento, que anos mais tarde segue sendo compartilhado em sala de aula enquanto docente de Direito Constitucional. 

Assim como Esperança Garcia – considerada a primeira advogada negra do Piauí, após escrever uma carta ao governador da capitania do Piauí, que denunciava as violências que ela, suas companheiras e filhos sofriam na fazenda do Algodão , em 1770 -, Manoela também foi a primeira em muitas posições importantes na história da OAB Pernambuco. 

“Demorou 90 anos para que uma mulher negra estivesse incidindo nesse espaço e na gestão atual de uma passou para 20 mulheres negras no Conselho da OAB em Pernambuco. Nós iniciamos um movimento nacional de cotas dentro da advocacia e a OAB Nacional reconheceu uma movimentação de mulheres negras na advocacia, reconheceu a necessidade de cotas raciais no montante de 30%, e na eleição do ano passado o movimento negro exigiu seu espaço nas chapas com representação de 30%”, enfatizou Manoela, que além da posição de conselheira também compõe a Secretaria Geral Adjunta da Ordem. 

“A OAB está em um processo de franca ascensão, ocupação e discussão de pautas raciais pela presença tanto de mulheres quanto de pessoas negras. Daí esse é o ponto do movimento que construo, principalmente aqui em Pernambuco, de uma forma aguerrida, dia a dia a gente tenta fazer esse enfrentamento contra o racismo, machismo, a lgbtfobia”. 

Educação como ferramenta para reconfigurar o sistema

“Questionamento é a chave de mudança dentro do espaço. A mulher negra em espaços como OAB é um condutor para ampliar até mesmo a visão mais diversa para as pautas relacionadas à negritude”. Com essas palavras, Manoela destaca com a política de base e sua atuação educacional promovem aberturas para que outras mulheres e pessoas negras também passem a ocupar lugares em instâncias como a OAB.

Com um sorriso estampado no rosto, Manoela descreve com felicidade que hoje não é mais a única mulher negra no Conselho e que espera ver mais rostos adentrando e transformando o espaço, desde um post nas redes sociais até a ocupação dos postos de decisão dentro da Ordem. Para ela, o caminho é a descolonização do direito, iniciando desde a universidade. 

“Ser mulher negra, lésbica e de terreiro, usando black, usando turbante, num curso de direito já é extremamento disruptivo. E para nós é ‘preciso’ um pouco mais de esforço para poder passar credibilidade acadêmica”, mas é necessário inquietar os lugares de conforto a partir da “questão visual, por que a academia é um espaço de poder, nós estamos em um espaço de produção de conhecimento e quando estou dentro de uma faculdade eu tenho a possibilidade de descolonizar o pensamento”. 

“Fazer com o que os alunos e alunas tenham um olhar antirracista para nossas legislações, antirracista para uma leitura de como o direito se apresenta e como os fatos sociais se colocam dentro desse contexto, então eu sou essa professora que cumprir esse papel”, afirmou. 

Além de anunciar sem receio quem é e a quê veio, Manoela participa de forma direta da formação da visão crítica dos futuros advogados e advogadas, projetando trajetos que potencialize a luta por equidade social, abordando pautas raciais, de gênero, de interesse das  pessoas com deficiência, pautando classe e criando soluções de enfrentamento às desigualdades, temas comuns na disciplina de Direito Constitucional. 

“Eu sempre mostro as incoerências  do sistema, sempre mostro o racismo enquanto o projeto político, eu sempre mostro o genocídio da população negra enquanto, no mínimo, uma ausência do estado”, comenta Manoela, que faz uso  de metodologias ativas em sala, como roda de diálogo, oficinas, palestras e vivências que possibilitem o contato com a realidade de  unidades prisionais, por exemplo. 

Aos olhos de seus alunos(as), familiares, amigos(as) e colegas de trabalho, Manoela é uma referência que inspira e serve de guia. Através da educação, ela impacta ainda mais vidas, assim como CEO do Instituto Enegrecer, afroempreendimento criado para mudar a realidade de manutenção do racismo estrutural nas empresas, apoiada nos pilares de inovação, diversidade e sustentabilidade. Se o futuro é ancestral, e pertence ao povo negro, as revoluções tocadas por Manoela com a sabedoria, educação e enfrentamento constante são as munições para racializar a rota do Direito no Brasil. 

Escrito por:

Maya Santos

santoscsmaya@gmail.com

 @mayacsantos