Aos 16, Bione chegou no palco do Coquetel Molotov

 

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Bione na concentração antes do show no Palco Sonic do No Ar Coquetel Molotov

 

Texto/Relato: Lenne Ferreira
Fotos: Jezz Maia

Andando pelo canteiro central da Avenida Caxangá, após a passagem de som de Bione para o show no No Coquetel Molotov 2019, o sol estava baixo. Era uma luz bonita que nos tocava e que aliviou um pouco da ansiedade de uma adolescente que passou algumas noites sem dormir. Por algum motivo, Bione falou do pai, com quem pouco contou ao longo da vida. O sobrenome dele virou seu pseudônimo na poesia e, agora, na música também. Mas foi sua mãe, Janaína, recém empregada, que se virou do avesso para conseguir tempo para pleitear o alvará que assegurou a apresentação da filha no palco de um evento que, até então, ela nem sabia que existia. Era a primeira vez de Bione e da DJ Boneka, que também caminhava com a gente naquela tarde de feriado da proclamação da república, naquele chão de não sei quantos hectares chamado Caxangá Golf Club. 

No trajeto até a parada de ônibus, Boneka e Bione disseram que iam pular a plataforma do BRT. Mas tinha um carro da polícia estacionado bem na frente. Insisti para que pagassem a passagem. Mas nem insisti muito porque esse sistema de transporte precisa ser mesmo boicotado todo dia e eu também sei que uma passagem economizada é garantia para outro rolê.  “Deixem para ser presas depois do show, por favor”, brinquei. Rimos alto enquanto eu tentava ignorar as gracinhas de uns macho uó que ouviam sertanejo no posto de gasolina próximo. O assédio durou até concluir a travessia das quatro faixas da Caxangá. Tudo por causa de um short, ou melhor, por causa do machismo mesmo. Bione e Boneka seguiram para a estação BRT e eu peguei meu destino achando graça. Cinco minutos antes, a gente tomava refrigerante no restaurante do Clube, onde os associados pagam muito cara para curtir piscina e sol, astro rei mor, que oferece sua luz todos os dias sem cobrar um centavo. Rico tem uma mania de fazer questão de gastar com coisas gratuitas desde que garantam exclusividade.

Quando ainda estávamos no restaurante, uma mulher da mesa ao lado puxou assunto: “Vocês sabem qual é a programação?”, perguntou. Sugeri que ela seguisse o Festival no Instagram porque a programação era extensa, mas citei as minhas preferidas para não parecer indelicada. “Drika Barbosa, Liniker, MC Tha, Dani Costa”. Obviamente que ela não conhecia. Pulei para Lia de Itamaracá e a reação foi imediata: “Ah, já dancei muita ciranda na infância”, contou. Aproveitei a deixa: “Então vai ver o show”. Porque, SIM, quem tem dinheiro e se diz um “apaixonado pela cultura popular”, precisa começar a demonstrar isso garantindo a sustentabilidade de artistas que perpetuam traços de uma identidade ancestral. “É obrigação da branquitude financiar a revolução preta”, já disse Ericka Malunguinho. Escrevi sobre isso quando fiz a cobertura do Coquetel Molotov em 2017, quando Lia se apresentou no Som na Rural sem uma estrutura à altura da sua importância.

Sábado passado, a cirandeira retornou no palco principal, no topo, onde é o seu lugar. Não vi o show por causa dos corres de produção da estreia de Bione, mas a vi na passagem de som, quando sua voz pairou sobre todos ali presentes. Quem tava no pesado ou jogando Golf. Divindades são assim. Não escolhem a quem tocar. A voz de Lia é para ser ouvida por todos e todas. Lia é bússola. Escuta ela que o caminha à tua frente se abre. Aos 75 anos, a cantora lançou “Ciranda de Ritmos”, um trabalho financiado pelo selo do edital Natura Musical e que contou com um time de profissionais com muitos acessos (DJ Dolores e Ana Garcia assinam a produção), o que possibilita mais oportunidade para uma cantora que, antes mesmo de contar com qualquer tipo de estrutura ou privilégio branco, já tinha virado história. Lia é História viva. Mérito dela. Que esse projeto novo se converta em mais recursos para a nossa cirandeira querida, que ainda tenta concluir a reforma no centro cultural que mantém em Itamaracá, onde a prefeitura continua ignorando a importância dessa artista referência nacional, que deveria era ter um monumento na entrada da cidade. “Homenagens em vida”, como Lia sempre faz questão de dizer. 

Quase 60 anos mais nova que a cirandeira, Bione, uma adolescente afoita que só a murrinha, lançou sua primeira mixtape, “Sai da Frente”, há uma semana e mostrou o seu tamanho no palco Sonic do Festival. Para chegar até lá, o percurso envolveu uma série de problemáticas que só uma produtora com muita  consciência do seu papel pode encarar. Trabalhar com artistas pretas e faveladas é para quem tem peito. Longe de desejar um lugar de mito (não precisamos, mitos não salvam ninguém), o que a Aqualtune faz é contribuir com a carreira de artistas que estão ideologicamente alinhados com um projeto de mundo onde os pretos não tenham mais que sofrer atrocidades racistas como passar a infância toda achando que o problema era o seu cabelo e, não, as marcas, que só ofereciam produtos para crianças brancas e de cabelos lisos. Na moral, é muita maldade, véi! 

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Dea é a prima que Bione cita na letra de “Sai da Frente”. Ela levou sua maleta de maquiagem para maquiar a MC

A Aqualtune existe e ainda tá de pé porque é preciso se manter persistente para fazer a roda desse mercado girar e apontar na direção de gente como muito talento e pouca oportunidade. “Só se faz dinheiro com dinheiro”, ouvi recentemente. Pois sem dinheiro mesmo, essa produtora tem resistido, sem edital de financiamento, sem apoio da iniciativa privada, mas com muito trabalho e conexões que valem mais do que dinheiro e que são essenciais para tornar Biones possíveis. Desde o cabelo (Salão Anastácia), passando pela arte de capa (Traça Vasto), as fotos de divulgação (Jezz Maia), planejamento de mídia (Jean Duarte), as roupas e local para ensaio fotográfico (Sexto de Roupa e Sexto Andar), os ensaios do show na sala de dança do Paço do Frevo (que tem como contrapartida uma oficina de Bione), tudo na mixtape da MC é real demais, é colaborativismo puro. Porque ela nasceu cantora desde antes de pisar no palco. Com foco e determinação, tem feito seu sonho acontecer mesmo que, para isso, precise pular plataforma. Sai da frente, ela já avisou e “não tá brincando”.

Antes do seu show no Coquetel, mesmo que muito apreensiva, Bione quis assistir a estréia do novo trabalho do Luiz Lins. Ele apresentou “Plástico” de uma forma tão entregue que quase deu para tocar suas linhas. Um cantor refinado, emocionado no melhor sentido, delicado e furioso também. Ali, no palco, diante uma plateia gigante, Luiz se despiu. E como é bom assistir artistas que vão além do script e que não se encabulam em demonstrar suas humanidades. Luiz sabe de si, se busca e se encontra em cada letra, em cada novo projeto. É muito bonito acompanhar esse percurso. A primeira vez que ele foi escalado para fazer o Coquetel Molotov, na edição Belo Jardim, não conseguiu chegar a tempo. Quem conhece Luiz, sabe: sua relação com o tempo é outra. Não cabe no nosso relógio. Esse ano, teve sua segunda chance na cidade agrestina e no palco principal do Festival também. E eu preciso dizer “Que massa”, porque é preciso, SIM, insistir em artistas como ele, que nos atravessam com suas verdades próprias, não universais. Luiz Lins, teu futuro é logo ali, onde tu, e somente tu, quiser chegar. 

DJ Boneka e Bixarte  deram mais vigor à apresentação da artista e demarcaram o projeto de revolução das pessoas trans e não binárias

Bione também tá desenhando a sua direção. Não representa ninguém além de si mesma e sua história. Dominou seu palco do início ao fim, mandou beijo para mãe, agradeceu e agradeceu. “Sem desperdiçar uma linha, cativando a plateia”, ela aproveitou cada segundo ao lado de uma DJ talentosa e com muita história para escrever ainda, a Boneka. Com a chegada de Bixarte, participação especial, o palco foi tomado por uma energia bonita e vigorosa que fala sobre uma cena cada vez mais dominada por corpos fluidos, territórios sem fronteiras, mas com muita identidade. A paraibana, que Bione conheceu no Campeonato Nacional de Poesia Falada, é um dos nomes mais promissores do Nordeste e, nesta semana, lança seu segundo projeto autoral. O encerramento do show teve a mãe de Bione no palco. Ela me chamou também, queria que eu dissesse algumas palavras. Mas não pude, não consegui. Não deu. Fui questionada por isso algumas vezes ao longo da noite. Eu respondi que, ali, eu só tava conseguindo sentir. Escrevo agora, de fora do Recife, porque distâncias físicas também são importantes para que consigamos fazer outras leituras e reflexões.

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Encerramento do show com Janaína, a mãe de Bione, no palco.

Não é um processo fácil colocar uma artista como Bione no palco por mais talento que ela tenha ou gente fortalecendo seu trabalho. Para nós, que nunca tivemos acesso a grana de verdade, não é tão simples aprender a negociar cachê, entender o funcionamento de grandes estruturas, ponderar posições, pensar estrategicamente, peitar o racismo de frente porque ele se apresenta em todos os lugares em que estejamos. Estar na função de produtora de uma artista como Bione é perceber que estamos hakeando o sistema. O processo de empretecimento dos espaços também se dá  de dentro para fora, sensibilizando quem tá nas esferas de poder. E a equipe do Festival foi sensível e correu muito para conseguir a liberação para Bione se apresentar. Obviamente, não é nenhum favor, mas arrisco dizer que isso é movimentar estruturas há muito sedimentadas. Quando um Festival com esse porte, iria se preocupar em contemplar uma adolescente preta e pobre na sua grade? Acionar advogada, mandar equipe para a defensoria pública? Aliás, o alvará saiu um dia antes do show. Isso diz muito sobre o que as pessoas pretas estão conseguindo pautar e de que como o processo de conscientização racial tem avançado. Mérito de quem esteve no fronte antes de nós, nossa ancestralidade, que lutou para que, hoje, a gente consiga estar com um microfone na mão.  

Na saída do Festival, antes de chegar na portaria, encontrei com Ana Garcia, com quem já havia cruzado em mais uns dois momentos ao longo da noite. Dessa última vez, ela me apresentou ao seu companheiro: “Você tem que conhecer. Essa é Lenne. Pense numa mulher para arretar”. Eu completei: “Necessariamente, né?”. Ela sorriu e concordou. Elogiei a organização, a atenção da equipe da produção geral e do palco Sonic com Bione. São 16 anos desse Festival que envolve uma série de ações que vão além da programação musical e que, assim como Bione, chego à adolescência mais consciente do seu papel. O Coquetel Molotov começa a entender que produção cultural não se faz distante dos contextos políticos e sociais. Ainda sinto falta de pessoas pretas nas funções de liderança e de um olhar que esteja atento às especificidades que permeiam a contratação de artistas que, muitas vezes, não tem mesmo nem a passagem para se deslocar. Por isso, é importante garantir mais condições para as atrações locais, entender suas realidades porque os que vêm de fora, principalmente, do eixo Sul/Sudeste, já contam com muitos privilégios. É dívida histórica que precisa começar a ser sanada agora por quem se diz estar do nosso lado na luta por igualdade e justiça. Nós, que assumimos, mesmo sem querer, papéis de influenciadores precisamos ir além da crítica também. Desconstruir o racismo exige diálogo e pode me chamar de didática por que eu sei que sou mesmo. Como diz na letra da filha de Janaína “se eu vivesse de opinião, minhas rimas nem saiam da minha gaveta”. Estamos aqui para construir, mas só senta na nossa mesa quem tiver ouvidos para ouvir, pois a gente já escutou demais. Ou é isso ou só “Sai da Frente”. 

Lenne Ferreira é filha de Luciana, jornalista, produtora, co-idealizadora da Aqualtune Produções, que cuida da carreira de Bione

Escrito por:

Afoitas Jornalismo

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