1º Leilão Trovoa em Chamas e políticas de sobrevivência da arte periférica

A Lei 1075/20, popularmente conhecida como Lei Aldir Blanc, é uma conquista da sociedade brasileira e não apenas da cadeia produtiva da cultura. Foi em meio ao isolamento social e pandemia de coronavírus que a classe artística se mobilizou virtualmente em todo o território nacional, reforçando a hashtag #AprovaEmergenciaCultural, que chegou a ser o segundo assunto mais comentado no Twitter à época. Em Brasília, o projeto de autoria da deputada Benedita da Silva (PT-RJ), cuja relatora foi a deputada Jandira Feghali (PCdoB), encampou uma disputa no campo da cultura quando todos em Brasília se voltavam – e com razão, porém unicamente – para a calamidade sanitária em que o país se encontrava naquela altura.

Desde o primeiro momento foi advertido que o impacto da crise de saúde acarrateria bilhões em perdas para profissionais do setor cultural, que até hoje estão impossibilitados de exercer suas atividades em decorrência da pandemia. Cinemas, museus, galerias, livrarias, casas de shows e bibliotecas precisaram se reorganizar para seguir todos os protocolos da Organização Mundial de Saúde (OMS) e das demais autoridades sanitárias a nível municipal, estadual e federal. Além disso, no estado de Pernambuco, recentemente foi divulgado pelo governo o Protocolo Padrão de Convivência com a Covid-19 que determinava a liberação, no mês de outubro, de evento com capacidade para 300 pessoas e, em novembro, para até 1,5 mil pessoas. Porém, com a ascendência da curva de infecção por coronavírus a tendência é que a população procure a tomar mais cuidado e evitar aglomerações, ainda que pequenas.

Se, por um lado, a cadeia produtiva da cultura precisou parar as atividades presenciais inteiramente, de outro lado foram os artistas, técnicos e produtores culturais que mais rapidamente precisaram se adaptar aos palcos virtuais, leitores digitais, streaming, etc. E graças a essa dedicação, somando-se ao acervo anteriormente produzido, a quarentena tornou-se mais tragável.

Ao longo de nove meses o setor cultural, em especial os movimentos antirracistas e feministas, organizaram-se remotamente não apenas para as questões tangentes à cultura, uma vez que em meio a pandemia, se mobilizaram em atenção ao crime contra Miguel; e em defesa da criança que passava por um procedimento abortivo. Foram muitas as webconferências sobre a Lei Aldir Blanc, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (Aliança pelo Brasil – RJ) no mês de agosto, e assim os cadastros municipais, antes raros para determinados setores da cultura, como as artes visuais, entraram nos checklists dos agentes culturais. Para além das legislações e burocracias, emergiu ainda, como uma forma de respiro, a organização coletiva de maneira ainda mais forte.

https://www.youtube.com/watch?v=6L_IZaz1Yns

Foi o Caso do 1º Leilão Trovoa em Chamas que reuniu, na Casa de DonArlinda em Camaragibe, dois coletivos atuantes no Recife e Refião Metropolitana: o Leilão em Chamas Oficial e o Trovoa Pernambuco, que faz parte de um levante nacional de artistes, curadores e arte-educadoras. Foram leiloadas 23 obras de artistas negras e indígenas: Joyce Firmiano, Aline Sales, Amanda Souza, Priscilla Melo, Liz Santos, Dhuzati, Benedita Arcoverde, Rayellen Alves, Thaysa Aussuba, Karla Fagundes, Nathê, Preta Afoita, Suh Amorim, Letícia Carvalho, Edgleice Barbosa, Flô, Nefertite, Iza Preta, Micaella Alcântara, Geni de Araújo, Kalor, Ayla de Oliveira, Tuca Duarte, Aline Sales e Giselle Natália. Apresentado por José Carbonel, idealizador do Leilão, e ainda pelas grafiteiras Nathe e Rebecca França, foi transmitido ao vivo, com direito a entretenimento de qualidade, mais uma aula de história da arte pernambucana contemporânea e também sobre organização social de base na cultura periférica. Em bom pernambuquês, a verdadeira corda de caranguejo, ao invés de “ninguém solta a mão de ninguém”, como o próprio Carbonel gosta de falar.

A expressão “corda de caranguejo” vem a calhar não apenas pelo linguajar, que nem é só pernambuquês. A carapuça serve quanto à analogia entre o grupo de crustáceos e nós, enquanto coletivos periféricos e pretos: mesmos destinados ao abate e ao genocídio da nossa população operacionalizada pelas elites por meio de mecanismos estatais, como os caranguejos que os humanos sacrificam à beira-mar, após um angustiante cativeiro em que a espécie é criada, na suposta Manguetown procriados, amarrados e abatidos. Faz 500 anos só nesta terra que o povo africano e afro-brasileiro, assim como as diversas etnias tradicionais deste território, buscam resistir à colonização. Em se tratando de colonização aqui decodifico: a monarquia, as capitanias hereditárias, a concentração de recursos, a espoliação, entre outras engenharias sociais e civilizatórias do homem branco europeu que violentamente aqui chegou e que até hoje impõe essa violência, implementando-a pela via dos critérios de classe.

Quando dois coletivos cujas gêneses trazem consigo um pensamento embasado e vivenciado quanto às questões raciais, territoriais e de classe se unem, como é o caso do Trovoa com o Leilão em Chamas Oficial, isso significa que outras dezenas de coletivos acabam sendo agregados na empreitada. O 1º Leilão Trovoa em Chamas funciona até certo ponto como aglutinador de várias comunidades representadas pelas artistas participantes. Os recursos que retornam a partir da venda das obras são por sua vez reinjetados na economia desses bairros periféricos, nos pequenos comerciantes e/ou voltam para a cadeia produtiva das artes visuais por meio de novas aquisições de materiais ou até impressão de obras. Enquanto isso, a Lei Aldir Blanc e outros editais de fomento timidamente também vem sendo ocupados pelas populações antes marginalizadas, através de indutores sociais e políticas de regionalização. É um movimento complexo que precisa mobilizar a sociedade em prol da redistribuição de recursos e reparação histórica, mas já está acontecendo.

Em destaque, obra de Letícia Carvalho.

Escrito por:

Kalor Pacheco

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