É no chão onde o encanto do Carnaval acontece

Com 90 anos de história, porque o desfile de agremiações tradicionais de PE ainda não conta com passarela fixa?
Texto e Imagens: Lenne Ferreira
Sou cria do Carnaval da Dantas Barreto, quando acompanhava minha avó Carminha nos desfiles da Limonil onde ela saia de baiana. A gente chegava cedinho e, enquanto ela se arrumava, eu ia passear no meio dos carros alegóricos das agremiações. Eu ainda nem sabia que seria jornalista e que essa curiosidade já era um prenúncio da carreira que iria seguir. Vivenciei os desfiles na Dantas Barreto e, alguns anos depois, na Nossa Senhora do Carmo. Em 2023, a PCR anunciou uma nova mudança e as arquibancadas foram montadas ao lado do Parque 13 de Maio, na Rua João Lira. Um deslocamento que gerou muita insatisfação nos grupos que se preparam o ano inteiro para o encontro com o público e júri que elege as melhores performances. Após um hiato de dois anos causado pela pandemia, a expectativa, que era ainda maior, cedeu lugar para a frustração.
Quem foi assistir aos desfiles pôde constatar de perto o quanto a largura menor da avenida prejudicou as agremiações. No meio da arquibancada um homem revoltado berrava: “Ao invés de gastar 100 mil para trazer uma atração de fora, a Prefeitura poderia investir na estrutura do concurso”. Um mestre de Maracatu, que prefere não se identificar, reclamou: “Se a gente quiser ganhar um trocado tem que tocar até no meio dos porcos”. O local reservado para os/as puxadores/as das agremiações cantarem não tinha sequer um ornamento. Falta de cuidado que também foi observada pelos grupos de Maracatu que tiveram que se espremer para percorrer a passarela.

Local reservado para puxadores das loas de Maracatu não recebeu decoração
O deslocamento também impactou na presença de público, como destacou uma brincante que estava com três filhos: “Aqui não tem nada perto. Quem vem de metrô não vai andar até aqui. Os meninos tudo com fome e não tem nem onde comprar comida”. De fato, apenas cinco comerciantes vendiam no local. “Os ambulantes preferem o foco da folia”, comentou um vendedor de água. Esse afastamento também provocou a invisibilização de um trabalho fundamental para a manutenção do Carnaval pernambucano. Afinal, o que nos difere do resto do mundo é justamente as características tradicionais da nossa festa. Ela é cabocla, indígena e preta.

Nova área para desfile é mais estreita e dificultou a desenvoltura da corte dos maracatus
Apesar do aumento nos valores das premiações e das melhorias promovidas pela PCR como instalação de camarim climatizado conforme publicado em matéria da Marco Zero Conteúdo, não podemos deixar de observar que a mudança tem grande impacto na autoestima dos grupos. Quem não quer ser visto, ouvido e aclamado? Será que é coerente promover o “apagamento” das manifestações que conservam a essência do nosso Carnaval? Qual turista viaja para o Recife para assistir shows de artistas de outros estados? Garantir a proposta multicultural não inviabiliza a manutenção e valorização dos grupos tradicionais que dão sentido ao Carnaval de rua. É no chão que a rainha do Maracatu pisa que mora todo encanto da nossa festa.
Mesmo sem incentivo para botar o baque virado na rua, os/as desfilantes se apresentaram impecavelmente com suas cortes bem ornadas. Das mais jovens como Raiane, de 19 anos, que desfilou pela primeira vez com o Encanto da Alegria, às mais velhas, a emoção era o principal elemento. Na passarela, mesmo sem a estrutura merecida, o amor e a devoção deram o tom às apresentações de grupos históricos como Maracatu Nação Encanto do Pina, Maracatu Nação Cambinda Estrela, Maracatu Nação Leão da Campina e Maracatu Nação Estrela Brilhante e Maracatu Nação Porto Rico. Um espetáculo que merece um investimento à altura como a criação de um local fixo para os desfiles anualmente, a exemplo de um “sambódromo”. Potencial tem, marcas para patrocinar não faltam. O que falta é um olhar que identifique estratégias para capitalizar os concursos sem ter o cofre público como única fonte de renda e buscar as parcerias necessárias para valorizar o chão onde o encanto do Carnaval acontece. 90 anos de uma história constituída pelas manifestações negras e indígenas nordestinas merece respeito.
O maior Carnaval do mundo não pode apequenar o que temos de grande e mais valoroso que são os mantenedores da nossas tradições culturais. Se hoje somos conhecidos internacionalmente devemos tudo às calungas, caboclos de lança, caboclinhos e agremiações históricas do nosso estado. É no chão onde o encanto do Carnaval acontece. Não adianta ter Galo Preto Ancestral exaltando nossa herança africana e não alimentar a autoestima de quem perpetua esse legado.