Verão, corpos gordos e anti gordofobia

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Bonitas de Corpo na Praia do Pina, zona sul do Recife. Foto: Ivson Santo

A coletiva Bonita de Corpo realizou neste mês um editorial de verão com looks personalizados na Praia do Pina, Zona Sul do Recife. A primeira collab com a loja Duafe Arte Negra, que existe há 5 anos tendo à frente as empreendedoras Thalita Santos e Rayza Oliveira, resultou em uma linha de bodies com os tamanhos a partir de G. Tendo idealizado Bonita de Corpo no ano de 2018, Aline Sales, fotógrafa, artista visual e ativista camaragibense, relata a experiência recente e nos apresenta o novos contornos deste projeto sobre auto-amor que tem consolidado enquanto coletivo atuante na Região Metropolitana do Recife. Boa Leitura!

Havíamos marcado às 14h por inúmeros motivos. Eu, particularmente, estava bastante cansada e queria poder dormir até mais tarde no meu único dia de folga na semana. Às 23h da noite anterior, sábado, estava conversando com Larissa que já me apresentava o bronzeador novo e juntas decidimos ir mais cedo para pegar um bronze de biquíni antes de pousarmos para Ivson Santo, fotógrafo e também diretor do documentário “Gordxs”.

Em qualquer outro momento de minha vida certeza que eu estaria enaltecendo o biquíni de alguma amiga magra e procurando nas lojas de departamento um vestidinho que cobrisse parte do meu corpo, mas agora estava prestes a ser modelo em um editorial de verão com o coletivo anti-gordofóbico Bonita de Corpo. O bonde estava formado para arrasar no bronze antes dos primeiros cliques para o editorial e é sobre a definição atual do Bonita de Corpo e enfrentamento a gordofobia que vou falar aqui. Antes de mais nada, friso que é a parceria com Thaísa Espíndola, Larissa Santos, Thalita Ramos, Patrícia Lúcia, Nay Katarine, Madu e Júlio César, essa história não seria contada.

Acordei com Whatsapp de Larissa, sinalizando o tempo de saída de Paulista, cidade onde mora; então também combinei com Júlio, que por sua vez viria de São Lourenço até a minha casa em Camaragibe (os três municípios ficam na Região Metropolitana do Recife), a partir de onde seguiríamos para praia do Pina, zona sul do Recife, locação das fotos. Pouco antes de de sair, Ivson me ligou, disse que já estava na locação e pediu para eu levar uma caixinha de som, também conhecido, nas periferias do Recife e região, como “Cebruthius”. Era algo que não precisaríamos nos preocupar, pois a música inspira, e já tinha uns dois ou três destes escalados para o rolê. Tava tanto calor, mas tanto calor, que ainda no portão de casa eu já tirava a minha camiseta e entrava no carro com meu biquíni cortininha, e short.

Chegamos no Pina com a recepção de Larissa dando close com “tchauzinho de miss”, indicando a localidade exata onde estava, muito poderosa e segura de si. Íamos em sua direção, rindo e tirando as roupas para estendermos a canga. E assim Nay vinha chegando de Olinda, Thaisa da Boa vista, os companheiros, os amigos. Quando me dei conta, tinha um paredão de pessoas lindas, reais, estilosas, charmosas, empoderadas, donas de si e anti-gordofóbicas cantando, dançando, trocando, abraçando, fortalecendo, bronzeando os nossos corpos em nossas diversidades culturais e físicas.

ela disparava um olhar “tô julgando”,
porém mais tarde o seu olhar me afirmava um
“eu também posso”

Em alguns momentos eu tentava observar os olhares dos arredores. Engraçado nos últimos 30 anos, eram os olhares à minha volta que sempre me faziam temer o look do verão. Desta vez lembrei que precisava olhar, porque isto também faz parte do meu processo de pesquisa. Percebi uma mulher gorda ao lado, trajando um “biquíni-burca”, introspectiva com o espaço. Inicialmente ela disparava um olhar “tô julgando”, porém mais tarde o seu olhar me afirmava um “eu também posso”. Também prestei atenção, em outro momento, nas pessoas que olhavam sem entender o tanto de gente em suas variações: alguns passavam e riam com tom de alegria, como o senhorzinho do amendoim, que chegou a parar e nos observar por alguns minutos. “Oxe, todo mundo com maiô igual”, diziam.

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Outro dia, eu conversava com Thalita, criadora dos boddies Duafe, e ela me dizia: “Imagina chegar numa loja e ter roupa, boddies, maiô, biquíni pra você”. Pois é, estamos habituadas chegarmos em uma loja e a atendente não esperar a gente entrar e já dizer “só temos até o tamanho 40”. Nos habituávamos a “não ter” um estilo próprio e, sim, nos adequarmos ao que nos cabe. Sabíamos o que é ter vergonha de ir à praia, e nos escondermos debaixo de variadas peças de roupas no calor do Recife. Sabemos o que é ver a indústria da moda criando estratégias midiáticas que determinam o que é belo, e percebemos até a criação de padrão dentro da quebra dos padrões. Existem competições contínuas entre as mulheres pelo corpo “ideal” que na realidade só fortalecem o machismo e patriarcado.

Eu sempre soube da potência do Bonita de Corpo na construção de um debate anti-gordofóbico, mas aquele domingo na Praia do Pina me mostrou com ainda mais força que inserir esta frase em corpos que não estão ligados ao que é determinantemente belo é o dedo na cara de quem sempre nos enfiou de goela abaixo que somos um fracasso, doentes, não atraentes. Esse encontro, sobretudo na praia, me mostrou o tamanho do nosso poder quando estamos conexos a quem tem e/ou ama um corpo gordo.

Esse encontro, sobretudo na praia, me mostrou o tamanho do nosso poder quando estamos conexos a quem tem e/ou ama um corpo gordo.

A gordofobia é tão venenosa. Por exemplo, aquela amiga magra que acredita estar nos elogiando, quando diz: “Amiga, tu é linda, eu que não gosto mesmo de ser gorda. Deus me livre!”, “tem uns biquínis que são bem grandes, amiga, compra um para tu” ou “parabéns pela coragem, tenho certeza que tá incentivando muitas outras mulheres”. A gordofobia enraizada é capaz de fazer o indivíduo gastar tempo e energia tentando fazer outro indivíduo acreditar que é absurdo e até impossível o corpo gordo conseguir alcançar o auto-amor, desconsiderando assim todo o percurso construído a passos lentos e com variadas dores.

No editorial Bonita de Corpo, eu quis ser a última pessoa a ser fotografada para observar bem as camadas de quem estava ali, inserido no processo como espectador e também protagonizando, e digo: FOI SURREAL! Nós, muitas vezes, com corpos fora da caixa da beleza estereotipada, somos cruelmente enfiados numa cadeia de dor. Ao ficar imersa no Bonita de Corpo, enquanto coletivo, percebo a cadeia de afeto e acolhimento que é naturalmente construída.

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Aline Sales idealizou o projeto Bonita de Corpo em 2018. Foto: Ivson Santo

Quando eu vejo tantas câmeras apontadas para nós na frenética construção imagética, quando ouço o grito “pega esse paredão da porra”, e percebo a entrega absoluta ao espaço e ao tempo, vejo as conexões interestaduais e intelectuais, e as nossas diferenças respeitadas, flertes saudáveis e outras variadas inserções, eu sinto a necessidade de externar como o Bonita de Corpo começa. O Bonita de Corpo tem início quando mainha me dá amor absoluto e extrema confiança; quando Ana Lira – fotógrafa, artista visual e curadora – insere a obra numa exposição dentro da Galeria Capibaribe da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, uma instituição federal que outrora o meu corpo negro e periférico não ocuparia; começa quando minha amiga Juliana Gueiros – ex-atleta, professora de educação física e magra – me diz, com orgulho, numa sexta a noite que interviu numa atitude gordofóbica. O nosso enfrentamento a gordofobia também recomeça quando Cannibal – músico e produtor cultural reconhecido no Alto José do Pinho e no mundo – nos dá espaço e voz na televisão pública (fui entrevistada por ele no TV PE No Ar, programa da TV Pernambuco) e com o convite para realizar o primeiro desfile do coletivo no “Arte Transforma” realizado na Torre Malakoff – Recife; quando Júlio César – integrante do coletivo, ilustrador e designer de moda – diz com imponência não ser menos homem por estar com uma camisa escrita bonita; quando Kalor Pacheco, além de me incentivar a escrever mais e pautar as minhas vivências nos grandes veículos de imprensa, me convida para o Levante Nacional Trovoa em Pernambuco (Entremoveres) numa construção artística com mais de 60 mulheres racializadas nas artes (entre afrodescendentes e indígenas), na qual mediei a roda de diálogo Efeitos do Racismo e Gordofobia no Museu da Abolição, tendo mainha presente e orgulhosa com a sua filha no front de uma atividade de uma instituição federal. O Bonita de Corpo cresce quando Anamaria Carneiro – psicoterapeuta e Feminista antiproibicionista – me acolhe e diz, “vamos nessa”; quando Lila Carvalho – designer de moda- me ensina o caminho; e se estabelece quando nós: eu, Thaisa, Thalita, Larissa, Júlio, Nayara, Madu e Patrícia pega na mão uma das outras e dizemos: “VAMOS OCUPAR TODOS OS ESPAÇOS QUE NOS FORAM NEGADOS”.

A pesquisadora e ativista Malu Jimenez Jimenez também nos inspira com o seu projeto Lute como uma gorda. “Quando arrancamos de nós esse sentimento de horror ligado ao adjetivo ‘gordo’, estamos nos tornando resistentes e desobedientes dissidentes da norma imposta por uma sociedade que padroniza e controla corpos e desejos, que define o belo e o saudável”, analisa a professora, doutoranda em Estudos de Cultura Contemporânea na UFMT.

Eu nasci mulher, preta, gorda e no subúrbio, estou acostumada que me digam que não posso. Após receber as imagens do editorial, encantada com a sensibilidade de Ivson, reafirmo que os brancos (isso mesmo, os brancos) e suas imposições sobre um padrão estético eurocêntrico não mais tomarão de assalto minha intensa vontade de viver. Reafirmo a rede de apoio de pessoas gordas que nosso coletivo vem constituindo e não mais, como diz o rapper mineiro Djonga em Favela Vive, “o prazer do abuso fica para maioria e o prazer de gozar sobra para 1%”.

_DSC4320Idealizadora do Bonita de Corpo, Aline Sales é fotógrafa, artista visual e produtora cultural residente em Camaragibe – PE. Seu trabalho perpassa pelo campo da narrativa visual acerca da gordofobia, racismo e periferia. A artista atua na fotografia desde 2010, tendo o próprio corpo como mote político para criação de sua obra, reafirmando sempre a importância de ocupação dos corpos gordos, negros e periféricos nos espaços que percorre. Já expôs na Galeria Capibaribe (UFPE), Museu da Abolição e Galeria Janete Costa. 

Texto editado por Kalor Pacheco, artista multidisciplinar e jornalista colaboradora no Blog Afoitas.

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