Joelma não pode ‘substabelecer’ sua dor

Após mais um adiamento do julgamento do assassino confesso de Mário Andrade, Joelma segue na luta por justiça com o apoio de amigos e movimentos negros
Substabelecer. O significado da palavra, mais uma do vocabulário ‘juridiquês’, foi explicado pelo promotor de justiça para esclarecer outro adiamento do julgamento do ex-PM acusado de assassinar Mário Andrade, adolescente do Ibura, há dois anos. O termo não foi compreendido pelas equipes de reportagem que estavam no Fórum Rodolfo Aureliano, em Joana Bezerra, na manha da última quarta-feira (10), para cobrir o júri popular. Foi a primeira vez que a maioria ali presente ouviu o palavrão. Até pedi para o promotor conferir a escrita e fui pesquisar no dicionário. Substabelecer: passar para outrem (encargo ou procuração recebidos); nomear (alguém) como substituto. Na prática, o advogado do caso habilitou outro para acompanhar o réu, que chegou sozinho ao tribunal. Sem defesa, não tem julgamento. É uma condição básica, explicou o juiz. O detalhe é que ninguém estava sabendo antes e, em menos de 5 minutos, a sessão estava encerrada. A nova data ficou para seis de novembro.
S-U-B-S-T-A-B-E-L-E-C-E-R. Repeti algumas vezes para não esquecer. Até que eu gostei mais da palavra depois que descobri a existência e o significado dela. E, SIM, eu tenho curso superior e já li muitos livros ao longo das minhas décadas de vida, inclusive dicionários, que mainha incentiva a gente a ler para diversificar o vocabulário. Mas Joelma, mãe de Mário, que luta por Justiça para seu filho há dois anos, e tantas outras mães pretas enlutadas pelo racismo institucionalizado em nosso país, nunca ouviu o verbete que, na manhã do dia 10, representou mais um adiamento de um caso que chocou a todos e todas pela futilidade do motivo: Mário esbarrou de bicicleta na moto de um ex-PM (o acusado perdeu a farda e aguarda julgamento preso).
A nova data foi instituída pelo juiz, que pediu “silêncio” no júri por uma “questão de respeito”. Joelma, desrespeitada em seu direito de ver o assassino do filho sentenciado, não silenciou. Gritou sua dor e foi acolhida pelos amigos. Aquela dor, composta pelas cordas vocais de uma mãe indignada, não é bem vinda no ambiente envelopado de mármore (tem material mais frio?). Não era a primeira vez que Joelma passou por isso. O primeiro julgamento, marcado na data de aniversário de Mário (ele faria 17 anos em 24 de setembro), foi um golpe (mais um), que em nada diminuiu a obstinação da mãe pela Justiça. E fica muito simples entender de onde vem toda essa força: a dor de Joelma não pode ser S-U-B-S-T-A-B-E-L-E-C-I-D-A. Para ela, não é possível transferir para outra pessoa o desgosto pela ausência do filho. Não tem como trocar e pedir para alguém sentir por ela, para representá-la no julgamento com aqueles homens de togas pretas e ainda encarar o assassino do filho sem romper o silêncio respeitoso do Tribunal. Para Joellma não é uma alternativa colocar outra pessoa para levantar de manhã e cozinhar ou lavar nos dias em que a vontade é de sufocar a saudade na cama, até acabar aquele 25 de julho de 2016, que ela gostaria que não tivesse nascido. Mário tinha 14 anos e só estava andando de bicicleta. “Porque?” Para quem é possível Joelma transferir a culpa que nem dela é? A resposta e a responsabilidade vêm sido substabelecidas desde os tempos coloniais. Não há para Joelma a opção de substituir o sentimento de revolta por mais uma mobilizaação frustrada por uma Justiça seletiva e que desperdiça dinheiro com um sistema burocrático que não consegue adiar uma audiência com antecedência.
Também não é possível à mãe de Mário, que passou a fumar mais para preencher o tempo das noites insones, transferir o cansaço mental e físico também. Não se trata de dois julgamentos adiados. São dois anos sem a presença viva de alguém que se ama. Posso mensurar um pouco dessa dor por ser mãe de uma menina de 12 anos, que também mora na periferia recifense e que já presenciou diversos abusos policiais. Deu pra sentir após o julgamento, quando tudo o que ela queria era dar uns tragos antes de explicar, de novo, para a imprensa, o quanto ainda espera por Justiça, seu sentimento de impotência. O momento close nas lágrimas que já se naturalizou nas telas de nossas casas ao meio-dia.
Estamos acostumados com o luto e a dor das mulheres negras, lamentamos até, compartilhamos e damos likes, mas nos desresponsabilizamos. Não fosse assim, toda vez que um “Mário” morresse pelas mãos do racismo, a gente parava a cidade. “A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil”, repetem as estatísticas. A cada 23 minutos mais uma mãe negra chora a morte do filho.

Joelma conta com amigas como Luísa e ativistas que lutam contra o genocídio da juventude negra
Mas Joelma não anda só e aí está o motivo da sua força. Existe uma rede formada por amigos e amigas, familiares e ativistas de movimentos como Reaja, que organiza e apoia a campanha #JustiçaParaMário junto com a mãe de Mário, que também faz parte da coordenação do movimento em Pernambuco ao lado de Ivana Driele. Outro apoio importante tem sido dado pelo Coletivo de Expressão, Cultura e Resistência Bagaço. Gente do povo, que segura a mão de Joelma, oferece afeto, escuta e até ajuda financeira. Na volta para casa, no ônibus que Joelma conseguiu com um amigo para transportar as pessoas até o Fórum, seu silêncio resignado foi reativado pela fala da amiga Luísa, mulher negra atuante em diversas frentes pela luta no campo, detentora de saberes ancestrais, que veio prestar solidariedade . Ela saiu com seu vestido verde sublinhado por flores brancas de Tracunhaém para comparecer ao julgamento. Luísa, que também perdeu um filho (por motivo de assalto) em 2001, “cantou” palavras de amor e fortalecimento. Ali, toda desumanização judiciária, que não quer lidar com choro nem lamento de uma mãe inconformada, estava dissolvida. Conheço bem esse ambiente. Estagiei por dois anos no Tribunal de Justiça de Pernambuco, conheci pessoas que foram fundamentais para a minha formação, muitos profissionais com os quais convivi e convivo até hoje, exemplos que levo comigo (inclusive magistrados sérios que atuam na área da infância). Foi um mergulho nesse universo majoritariamente composto por homens de preto e mentalidades brancas. Sobrevivi!
Na rua sem calçamento onde Joelma mora, no Ibura, bem pertinho do Campo do Real, uma feijoada preparada pela advogada Jaqueline (do Coletivo de Juristas Negras) esperava o contingente. As filhas pequenas estavam com uma vizinha. Era aniversário de uma delas, que não pode contar com a atenção da mãe num dia tão especial. A casa miúda não impediu o fluxo das pessoas, que se organizaram na frente do local, onde também funciona uma lanchonete. O pequeno comércio se tornou possível graças a essa rede de apoio. Em meio aos telefonemas da imprensa, produção de nota à mão, picolé de saco e caldo de feijão, Joelma tentava ser educada e atenciosa com todos e todas. Em algum momento, no meio de alguma brincadeira, alguém se referiu a ela como “Joelmão”, aumentativo que fez todo sentido. Pequenina na estatura, Joelma, na verdade, é mesmo uma grande mulher. Está de pé e assim continuará até o dia do julgamento do assassino de Mário, cuja presença jamais será substabelecida. #MarioPresente #ResisteJoelma
Para acompanhar as próximas ações de Joelma e da rede de mobilização acesse: https://goo.gl/JNfFfk
Texto e fotos:
Lenne Ferreira (Afoitas)