Por Marias e Marielles

Ato no Dia Internacional da Mulher reuniu cerca de 10 mil pessoas, entre elas Maria José, ativistas  e feministas de movimentos sociais

Texto: Lenne Ferreira

Intervenção da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco lembrou que 80% das mulheres assassinadas em Pernambuco são negras (Foto: Fran Silva)

Quando ocuparam à Praça do Diário, por volta das 20h, as mulheres que percorreram todo o trajeto da marcha do 8 de março, ainda tinham fôlego para uma última intervenção. Em frente à ocupação Marielle Franco, com as faixas forradas no chão, a organização pediu que todas levantassem as placas que homenageavam a vereadora assassinada no Rio de Janeiro há 1 ano. Um grande círculo foi formado e, de cada boca, ecoava forte o grito: “Marielle Franco Presente, Hoje e Sempre”.   Neste momento, todas as câmeras estavam a postos para registrar o melhor ângulo das ativistas, muitas emocionadas com o levante coletivo que, por mais um ano, demonstrou a força do movimento popular feminista pernambucano.

Passado o momento efusivo, seguido pelo encerramento do ato, no meio do tumulto de braços e abraços, meus olhos cruzaram com os de Maria José. Ela tava logo à minha frente, no lado oposto ao meu, com uma calça azul escuro, sob a proteção do Frei Damião que estampava na camisa, uma sacola de plástico preta e sua plaquinha de Marielle. Em seu silencioso e solitário ato, as vezes interrompido pelo cumprimento de alguém, Maria José observava. Algumas pessoas pediram pra fazer foto dela, que convidou a mim e minha sobrinha Treice, para sairmos na imagem. Acho que ela gostou do figurino colorido que escolhemos para ir ao ato, mesmo que, por dentro, existisse um luto latente pelas vidas das mulheres vítimas das mais diversas violências física e simbólica. Recentemente, uma amiga querida foi espancada pelo companheiro, na frente da filha pequena, que ficou com a roupa manchada pelo sangue da mãe. Soube de tudo na manhã do ato e iria sair de preto, mas não. Eles não vão ofuscar nosso arco-íris, decidi, antes botar minha saia de tule amarelo e turbante rosa com verde.

Nunca tinha pousado com alguém que não conhecia para uma foto e, já que Maria José, aparentemente tão séria, me deu ousadia, iniciei uma conversa. Com 64 anos, Maria não sabia o que era feminismo e pediu explicação. Falei que se tratava de um movimento criado pelas mulheres para lutar por direitos e autonomia. Ela completou dizendo que a gente merecia mesmo e emendou: “demorei muito para ter direito e ser livre”.  Natural de Carpina, Maria chegou no Recife aos 8 anos de idade. Na verdade, chegou “trazida”. Para ser fiel às suas palavras, que pedi autorização para anotar no verso da placa de Marielle, único papel disponível no momento, ela veio com “uma mulher que chegou no interior procurando uma menina pra ajudar na sua casa”. O pai, com muitas bocas para dar de comer, entregou a filha para tentar a sorte na capital. Dos 8 aos 20 anos, Maria viveu sob o comando de uma família que residia na Rui Barbosa. “Eu não tinha direito a brincar, nem estudar, nem namorar. Me batiam muito e me chamavam de nega safada”, contou, sem pausa. “Uma vez, uma das tias da dona da casa apertou meu pescoço”, recorda. Ali, na Praça do Diario, Maria me botou pra pensar sobre quantas mulheres negras não foram “adotadas” como escravas pela branquitude, submetidas a péssimas condições de trabalho e maus tratos. Quantas não morreram sem aposentaria? A história já fez essa conta?

Aposentada, Maria José percorreu todo ato sozinha e também quis saber: Quem mantou Marielle? (Foto: Bruna Monteiro)

Maria tinha saído de casa pra “comprar umas coisas”, quando cruzou com o ato das mulheres na Conde da Boa Vista. “Gosto de morar no centro porque tudo acontece aqui”. Ela vive numa pensão na Soledade, que consegue custear com a sua aposentadoria. Participa de grupos de terceira idade, dança e frequenta missas em várias igrejas da área central. Ela não sabia, mas, sua maior felicidade, a conquistada da aposentadoria, foi uma das principais reivindicações do ato organizado por diversos coletivos feministas que reuniram pelo menos 10 mil mulheres. O tom das reivindicações ao longo da caminhada reiterou os 11 eixos temáticos defendidos pelo movimento, entre eles: Contra o Racismo: Vidas Negras Importam; Contra a Reforma da Previdência: Proteção Social é um Direito de Todas as Mulheres; Pela Vida das Mulheres: Não ao Feminicídio/Queremos políticas públicas efetivas de redução da violência; Em defesa da autonomia sobre nossos corpos: legalizar o aborto é proteger a vida das mulheres; e, Por Marielle: queremos uma participação política que não signifique um risco a nossas vidas.

Tava tudo escrito nas faixas que Maria não conseguiu ler. Apesar de saber escrever seu nome e ter estudado um pouco por incentivo dos patrões da última casa onde trabalhou. “Esses, eram bons demais pra mim. Como meu pai e minha mãe morreram no interior e eu não tinha ninguém aqui, me ajudaram a me aposentar”. Foi só com a Lei da Empregada Doméstica, sancionada em 2015 pela então presidenta Dilma Rousseff, que Maria pode ter seus direitos reconhecidos e sua carteira assinada pela primeira vez. “Foi aí que eu fiquei livre”. Não casou, não teve filhos, não fez fundamental nem médio, mas conquistou sua aposentadoria (por tempo de contribuição), essa, agora, sob ameaça com a reforma da previdência que afeta principalmente a vida das mulheres e se alinha com o pensamento machista e conservador do atual governo brasileiro, muito criticado ao longo de toda caminhada por meio dos gritos de guerra. Mas nem só do calor das reivindicações é feito um ato como esse. Mulheridade não existe sem amor e afeto. E, mais um ano, foi bonito assistir o poder da articulação gestacionada por tantas forças femininas. Sim, podemos mover estruturas.  Em vários momentos pude me alimentar do afeto e das palavras das mulheres com as quais cruzei pelo trajeto, inclusive, as que já não estão nesse plano, mas que continuam inspirando nossa luta e também estiveram presentes. #PaulaVive

Maria, que até hoje espera saber quem matou Marielle Franco, que não sabia o que era feminismo, mas seguiu o ato até o final, não sabe ler direito, mas quis ter sua história escrita por uma moça desconhecida com saia de tule amarela e fez várias poses para a câmera de Bruna Monteiro, fotógrafa que acompanhava o ato. Maria, que carrega sobrenome masculino, que saiu de casa ainda menina e que comemorou a aposentadoria como quem recebeu a carta de alforria, não sabe “o que vai ser do país do jeito que tá”. Eleitora de Lula, mulher negra, sertaneja, nordestina, doméstica aposentada, estava presente e viva no ato protagonizado por milhares de mulheres das quais ela também fazia parte mesmo sem curso superior, sem seios à mostra ou sem nunca ter ouvido falar em Ângela Davis. Maria, essa mulher pequena só no tamanho, representa a síntese do que acredito ser o foco principal dessa luta: garantir direitos e vida para as mulheres como ela. Para mim, que, às vezes, esmoreço, desanimo, que gostaria que fosse possível receber flores no Dia Internacional da Mulher porque amo mesmo flores (as prefiro no vaso com terra para que continuem florescendo), ouvir e conhecer Maria e  sua alegria pela conquista  da “liberdade” via aposentadoria reiterou a importância dos movimentos feministas discutir a reforma da previdência. Representou uma dose de estímulo para ir adiante também. Mas não sozinha porque acompanhada eu também ando bem melhor. Como tão bem reforçou a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, numa intervenção no meio da avenida/coração do Centro do Recife, seguiremos aquilombadas. Por Maria, Marielle, por mainha, Paula, Diana, Aqualtune, Dandara, nossas meninas e meninos também. Por todas NÓS.

Um salve a todas as mulheres que contribuíram para a construção de um ato tão vigorosos e potente:
AMB – Articulação Mulheres Brasileiras / Fórum de Mulheres PE
Casa da Mulher do Nordeste
Coletivo Mulher Vida
Coletivo Negrex
Coletivo Pitawa
COMFRA – Coletivo de Mães Feministas Ranúsia Alves
COMLESBI – Coletivo de Mulheres Lésbicas e Bissexuais
Consulta Popular
CSP-CONLUTAS
DCE UFRPE 11. DCE UPE
FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
FETAPE
Fórum de Economia Solidária
Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto
JUNTAS – MandatA Coletiva
Levante Popular da Juventude
Luciana Santos
Marcha Mundial das Mulheres
Marília Arraes
Movimento de Mulheres Olga Benario
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
MTST Brasil – Movimentos dos/as Trabalhadores/as Sem Teto
Mulheres da CUT
Mulheres do PCdoB
Mulheres do PT
Mulheres do PSOL
Mulheres do PSTU
Mulheres do SIMPERE
Rede de Mulheres Negras de Pernambuco
RENFA – Rede Nacional de Feministas Antiprobicionistas
Teresa Leitão
UBM – União Brasileira de Mulheres
UMES – União Metropolitana de Estudantes Secundaristas
UJS – União da Juventude Socialista
UNE – União Nacional dos Estudantes
UJC – União da Juventude Comunista

 

Escrito por:

Afoitas Jornalismo

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