Ondas de calor e estresse térmico castigam o Nordeste. Mas alguém lembra do Semiárido?

Em meio à onda de calor que estacionou sobre o Brasil, o Semiárido, único território com o clima semidesértico do país, continua a viver em esquecimento e negligência frente às mudanças climáticas.

Texto: Raquel Kariri | Imagem: Agência Brasil

 

O calor castigava quando Nazaré Isú-Kariri deu entrada na emergência da cidade de Brejo Santo, cidade localizada no extremo sul do Ceará, naquela tarde de terça-feira, 29 de setembro. Tendo tonturas, enjoo e dor de cabeça, Dona Nazaré, que é hipertensa e tem diabetes, foi internada naquele mesmo dia  para realizar uma ressonância. Um pouco distante dali, no posto de saúde da comunidade Baixio dos Bastos, Simone Isú-Kariri também passava mal junto com outras tantas mulheres, homens e crianças das comunidades indígenas e rurais da região.

O mal estar que acometeu tantas pessoas ao mesmo tempo tinha origem: era o calor. Estresse térmico é a forma como os pesquisadores se referem aos impactos fisiológicos em nosso corpo em decorrência da exposição prolongada às altas temperaturas. O corpo, em exposição ao calor por tanto tempo, encontra dificuldade para se autorregular na temperatura de 36,5°, ideal para o organismo. Fora isso, a sensação térmica, a umidade do ar e o regime dos ventos são índices utilizados para avaliar a sobrecarga que desaba sobre nós e produz sintomas corporais.

O termo representa a forma como os pesquisadores se referem aos impactos fisiológicos em nosso corpo em decorrência da exposição prolongada às altas temperaturas. Mas não só. A maneira como sentimos o calor, a umidade do ar e o regime dos ventos são índices utilizados para avaliar a sobrecarga térmica que desaba sobre nós.

Foi assim que a professora Renata Libonati, do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa/UFRJ), coordenando o primeiro estudo de avaliação de bioclimatologia de toda a América do Sul, chegou a um dado assustador: a cada ano, em média, os períodos de estresse térmico ganham dez horas extras nas 13 cidades analisadas no Brasil, 31 ao todo em toda América do Sul.

Em entrevista para o jornal O Globo, Renata contou que – “passar dias e dias sob estresse térmico causa sobrecarga no organismo humano. São dias sem descanso para o corpo. Raramente se diz que alguém adoeceu ou morreu de calor. Em geral, a causa é infarto, derrame, crise renal. Mas o gatilho foi a exposição prolongada às altas temperaturas. E isso só estamos começando a medir agora”. 

‘A onda de calor é um desastre negligenciado’, diz pesquisadora da UFRJ, comparando fenômeno a enchentes e deslizamentos.

Caso da fotógrafa Nívia Uchôa que passou mal e foi atendida com uma dor de cabeça que já durava dias: “Fiquei com dor de cabeça  a semana inteira, fui a aferir a pressão na quinta (28) e o farmacêutico falou que a  pressão pode ter aumentado por causa do calor, minha pressão normalmente é baixa por isso me preocupei”. 

Renata Libonati é categórica ao chamar as ondas de calor de um desastre negligenciado e aponta que, diferente de tempestades, deslizamentos e secas, elas colapsam nosso corpo silenciosamente. Na mesma entrevista, o pesquisador Djacinto dos Santos, um dos autores do estudo, aponta a gravidade do que está acontecendo: “A tendência de aumento é geral e as pessoas sofrem de 17 a 25 dias por ano de estresse térmico, é muita coisa”.  Ele também enfatiza que isso só tende a aumentar e no caso dessa onda de calor, o evento piora em decorrência do El Niño.

Semiárido: uma zona de calor negligenciada

A pesquisa que logo será publicada na revista científica internacional Theoretical and Applied Climatology,  e tem como primeiro autor Vitor Miranda, analisou os índices de cidades com mais de 1 milhão de habitantes, o que deixa de fora todos os municípios do Semiárido brasileiro, único território com clima semidesértico do país. 

Segundo a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA Brasil), cai aqui, em média, de 200 a 800mm anuais de chuva concentrada em poucos meses do ano e distribuída de forma irregular.  Como é natural das regiões semiáridas, esse volume de chuva é menor do que o índice de evaporação que, no Semiárido brasileiro, é de 3.000mm por ano, provocando um déficit hídrico desafiador principalmente para as famílias agricultoras que habitam as zonas rurais. 

Em períodos de seca ou estiagem muitas comunidades dependem exclusivamente dos caminhões-pipa, política mitigatória que é questionada há anos pelos movimentos populares da região, pois perpetua o clientelismo com as prefeituras locais e não promove segurança hídrica para as famílias. Não é incomum a água ofertada ser imprópria para o consumo. A cena de caminhões-pipa canalizando a mesma água que os animais bebem e defecam, infelizmente, se tornou corriqueira. 

Nesses períodos que se estendem de setembro a dezembro, as temperaturas podem chegar a 40º em algumas localidades. Com o fenômeno do El Niño dificultando a formação de chuvas, a instauração das secas eleva a níveis críticos a vulnerabilidade térmica e hídrica dos mais de 28 milhões de habitantes do semiárido que veem a água se tornar artigo de luxo.

“A baixa umidade do ar faz com que a onda de calor dure mais ao reduzir a chuva, que aliviaria a temperatura. A seca alimenta o calor e o calor aumenta a seca. É um sistema que se autoperpetua. E é uma onda dessas que está nesse momento ativa no Brasil”,  aponta o pesquisador Djacinto Santos. 

Mas nem com todas essas exigências climáticas, nem mesmo possuindo um clima semidesértico, o Semiárido e sua população são vistos com atenção e preocupação devidas, negligência que resulta na ausência de pesquisas, matérias e reportagens que direcionem o olhar e façam a correlação das ondas de calor, o estresse térmico e o território.

Pesquisas como a desenvolvida pelo Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais – UFRJ representam avanços importantes pois aliam estudos climáticos com as necessidades de saúde da população, principalmente a que está em maior vulnerabilidade. Entretanto, se faz urgente que pesquisas como essa extrapolem o eixo Sul-Sudeste e inclua as populações que residem nas bordas do país, pois se o  Nordeste é a periferia do país, não há dúvidas que o semiárido é a periferia da periferia do Brasil.  

Escrito por:

Afoitas Jornalismo

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