Nota de Repúdio à Capa do Jornal do Commercio com Black Face

Nós jornalistas negras do coletivo Afoitas repudiamos à foto publicada na capa da edição deste domingo, com uma personagem branca vestida e pintada como mulher negra, caracterizada ofensivamente de “Nega Maluca”. Lembramos que o papel social da comunicação é justamente o de defender valores de justiça, igualdade e respeito à cidadania de TODOS e TODAS não o de reforçar preconceitos e de perpetuar racismo. Dessa forma, queremos expressar como nos sentimos por meio de uma reflexão mais profunda com esse relato pessoal da Lenne Ferreira, que traduz como uma mulher de pele preta se sente ao se ver ridicularizada numa piada carnavalesca.

PORQUE ESSA CAPA DO JORNAL DO COMMERCIO É RACISTA:

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“Tava jogando sinuca,
Uma nega maluca, me apareceu
Vinha com um filho no colo,
E dizia pro povo, que o filho era meu.
Há tanta gente no mundo,
Mas meu azar é profundo,
Veja você meu irmão,
A bomba, estourou na minha mão…”

Esses foram os versos que deram origem ao personagem famoso na festa de momo, “Nega Maluca”. A primeira imagem dela apareceu no carnaval de 1950, dentro de uma marchinha composta por Ewaldo Ruy e Fernando Lobo. Segundo conta a internet, a inspiração da letra vem de uma cena que o Ewaldo presenciou. Ele estaria em um bar quando uma mulher negra apareceu com uma criança para entregar ao pai, que, despreocupado, jogava sinuca e se recusou a receber a criança afirmando que não era dele. Claro que aquilo seria um “ótimo” mote para uma música “divertida”, afinal, devia ser mesmo considerado muito engraçado uma preta se achar no direito de interromper a cerveja de um homem para cobrar responsabilidade paterna. A letra foi oferecida a Luiz Gonzaga, que não se interessou, e, logo depois, virou uma marchinha, além de fantasia de carnaval.

“Nega Maluca” também é o nome que batizaram a receita de um bolo muito popular em Portugal. Para alguns historiadores não citados na internet, o termo é dos tempos coloniais. Em 1840, uma escrava adicionou chocolate a uma receita tradicional. Como não sabia falar português, ninguém entendia o que ela dizia e passaram a chamá-la de “Nega maluca”. Outra versão, diz que o bolo foi batizado assim porque a tal escrava teria substituído o leite da receita original por água fervente e a manteiga, por óleo, dando origem a uma mistura maluca.

Em qualquer uma das versões, o racismo assinala a adjetivação da mulher negra, aquela com quem se pode dizer qualquer coisa. Na primeira, homens tratam com humor uma situação de negligência de outro homem para com uma criança, descrevem uma mulher negra como “barraqueira”, além de dar a entender que ela deve ter se deitado com muitos, mas a bomba estourou no colo de um pobre coitado que só estava de boinha jogando a sua sinuquinha. Achando pouco, o autor da letra ainda foi lá e fez um figurino esdrúxulo para essa mulher, que, durante o Carnaval, é normalmente encarnada por homens (???!!!)

A segunda versão deixa, mais um vez, comprovado o racismo estrutural, pilar da nossa sociedade, já que uma escrava, que criou uma receita famosa, não teve sequer o nome registrado na história dos cânones da gastronomia, esse lugar que tem toda influência da culinária afro. Mas qual é mesmo a cor dos grandes chefes de cozinha? Não precisa responder. Afinal, quem cozinhava era a Anastácia, mas qual é o nome da farinha de trigo?

Como mulher negra, sempre me incomodei com o termo, antes mesmo de conhecer a história, principalmente, porque perdi as contas de quantas vezes sugeriram que me fantasiasse de “Nega Maluca” no Carnaval. Como jornalista, aprendi que precisamos dominar não apenas a escrita, mas preceitos fundamentais para a garantia de direitos. Mais do que isso, como retrato de um tempo, o jornalismo tem o dever e a obrigação de acompanhar as mudanças e questionar padrões de comportamento contribuindo para sanar desigualdades.

Ao usar a imagem de um personagem como a “Nega Maluca”, na capa de um veículo de grande circulação, num domingo, o Jornal do Commercio do último dia 04 de fevereiro de 2018, foi racista e corrobora para a manutenção do estado das coisas. Essa capa criminosa (independente do conteúdo interno), deveria ser incluída no arquivo público, na pastinha de 1950, junto a todos os outros jornais que desrespeitaram as mulheres negras ao noticiar a criação de uma personagem caricata.

Contudo, para os jornais daquela época, que reproduziam valores inerentes ao contexto histórico de então, eu até passo pano quente. Para um jornal de hoje, não. #RespeitaAsPreta

Escrito por:

Afoitas Jornalismo

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