No embate “Marco Temporal x Vida”, já perdemos de lavada

Texto: Raquel Kariri

Já que temos um único planeta, e este lar cósmico se encontra em um ponto de não retorno das condições favoráveis à vida, que façamos do fim um momento digno, talvez o único momento digno que ainda podemos ter enquanto humanidade

Este artigo ia ser completamente diferente. Já havia escrito alguns parágrafos de uma historiografia acerca da invasão colonial, seus efeitos, e como isso descamba na excrescência do Marco Temporal. Mas por mais informações que sejam veiculadas, elas pouco ajudam em nosso coma colonial. A verdade é que no embate entre a estrutura do capital que move a tese do Marco Temporal versus a vida desse planeta,  já perdemos de lavada. 

A mera possibilidade de um projeto de lei que apaga toda a história de violências contra os biomas e os seres que nele residem (pessoas, bichos, pedras, solos, águas, energias climáticas), já nos sinaliza que venceram aqueles que concebem um mundo estéril, desprovido de vida, onde a tecnologia milagrosamente transformará lixo em alimento, poluição em ar puro, esgotos em rios cheios de peixes, chorume em florestas frondosas. 

É essa a fantasia. Que haverá um mundo em que humanos e máquinas superinteligentes serão felizes após o fim da biodiversidade. Nessa alucinação, a própria biodiversidade pode ser posta de lado. Depois quem conta lenda somos nós.

E se você chegou até aqui, deve estar pensando que estou falando do Elon Musk, Jeff Bezos, Mark Zuckerberg, bilionários donos de grandes corporações, americanos médio e a elite ruralista brasileira. Também. Afinal, são eles que operam o sistema-mundo colonocapitalista que está devorando o planeta. São eles que deliram na ideia de construir ônibus espaciais para se mandar daqui após terem sugado o último grão de areia limpa. 

Mas também estou falando de mim e de você. Estou falando de nossa apatia, nossa negligência. Estou falando que passamos um bom tempo produzindo um storie mas não nos empenhamos em entender a gravidade do  Marco Temporal. Nós também estamos presos na fantasia que a luta antirracista, feminista, LGBTQIAP+fóbica, a luta anticapacitista podem acontecer sem garantirmos as condições básicas de existência nesse planeta. 

Projeto de Lei que aprovado na Câmara dos Deputados diz que somente teriam direito à terra povos indígenas que estivessem no local antes da Constituição de 1988 (Imagem: Thiago Mioto)

Imersas em nossos ativismos, não nos damos conta que “a luta pela Mãe Terra é a Mãe de todas as lutas”, como repete incessantemente a deputada federal Célia Xakriabá. E é verdade. É preciso existir planeta se queremos acabar com o racismo, a misoginia, a lgbtfobia, o capacitismo. É verdade que mesmo nós, ativistas de direitos humanos, estamos sendo negligentes com o planeta e os seres triturados pelo Capital.

Nós também estamos em coma colonial. Alguns respirando sem aparelhos, outros entubados. O nível de adormecimento varia, mas boa parte de nós ainda permanece adormecida ao estalar das últimas florestas. Tombam matas, onças, pássaros, lagartos.. Tomba a Caatinga que possui mais de 50% de sua cobertura original desmatada, mas nós continuamos a “disputar a narrativa” do Big Brother. 

Em algum universo paralelo, o nosso ativismo se importa mais com o Big brother que com as florestas de pé. Basta ver o tempo que dedicamos a um e a outro.

Não quero parecer que estou transferindo a responsabilidade de homens, brancos, bilionários para mim e para você. Não sou adepta do neoliberalismo que individualiza problemas estruturais. O que estou tentando fazer aqui é nos convidar a olhar com agudeza para o declínio do nosso mundo. Estou te convidando a não virar o rosto, a não olhar para os lados. 

Já que temos um único planeta, e este lar cósmico se encontra em um ponto de não retorno das condições favoráveis à vida, que façamos do fim um momento digno, talvez o único momento digno que ainda podemos ter enquanto humanidade. 

Que nós o defendamos. Que defendamos os seres desterrados de todas as casas-florestas, incluindo eu e você. A luta pela Mãe Terra é a Mãe de todas as lutas, e pode ser a última coisa digna que nos resta a fazer.

Escrito por:

Afoitas Jornalismo

afoitas.contato@gmail.com

 @afoitas