Negrita MC protagoniza série no Canal Brasil

A mestra de cerimônias interpreta a personagem Boyzinha na série Lama dos Dias, de Hilton Lacerda e DJ Dolores, que estreia no dia 23.

Foto: Divulgação/Canal Brasil
A série de TV “Lama dos Dias” estreia no dia 23 de setembro, às 21h30, no Canal Brasil, e em alguns capítulos o país conhecerá o rosto e a voz da recifense Débora Leão, a Negrita MC, rapper e mestra de cerimônia do movimento hip-hop em Pernambuco. Negrita viajou para o Rio de Janeiro, onde participou na noite desta terça-feira (11) do aniversário do Canal Brasil, no Circo Voador. Lama dos Dias é co-dirigida por Hilton Lacerda e DJ Dolores, que através da ficção revivem cena cultural de Recife na década de 1990.
A história se inspira no surgimento do movimento manguebit e Boyzinha, personagem interpretada por Débora Leão, é integrante e vocalista da banda de rock Psicopasso. As gravações das cenas nas quais a artista participou ocorreram no mês de julho de 2017 e uma das principais locações foi no Alto José do Pinho, bairro da Zona Norte do Recife, onde se ambienta o surgimento da banda liderada por Boyzinha. Negra e lésbica, à frente de sua época, a personagem vivida por Débora tem discursos feministas e de empoderamento LGBT.
Negrita aparece no enredo a partir do segundo episódio de Lama dos Dias. Nas imagens que serão exibidas na série será possível assistir Débora Leão em cena com Roger de Renor, Lula Louise, filha de Chico Science, e com os atores Júlio Machado, Maeve Jinkings e Isadora Gibson, com quem fez par romântico.
Há seis anos você transita pelo movimento hip-hop e agora estreia no segmento audiovisual. Como surgiu essa proposta para trabalhar na televisão?
NEGRITA MC – Através de um convite de Helder Aragão de Melo, o DJ Dolores, por conta de uma apresentação no show de Isaar França, no coletivo Sexto Andar, no Edf. Pernambuco (Centro do Recife), há quase 3 anos. Helder assistiu, me falou que estava escrevendo uma série. Mais tarde fui convidada ao Edifício Pernambuco novamente, desta vez para conhecer Hilton Lacerda e conversar com ele e Helder sobre a personagem Boyzinha. Naquele dia eles me convidaram a atuar na série Lama dos Dias.
Qual a importância da batalha de MC’s, para você, dentro do movimento hip-hop? E o que essa vivência acrescentou à sua interpretação na série Lama dos Dias?
NEGRITA MC – A importância real das batalhas de MC’s hoje em dia é a forma de escape, na maioria das vezes. Superação das dificuldades da vida, que muitos enfrentam dentro das suas casas, ou até mesmo dentro de si, como depressão ou ansiedade. As batalhas transmitem uma energia surreal: digo por mim, pois sempre senti energias boas e muita instiga para batalhar. Até mesmo estando de fora dá aquela vontade de mandar uma idéia. Faz parte de mim e consequentemente contribuiu com a personagem Boyzinha. A batalha de rima, por exemplo, tão comum no movimento, é vivenciada também na ficção a partir do momento em que precisei fazer um freestyle em um show da Psicopasso.
Como é para você, uma artista de 22 anos, vivenciar através da ficção o movimento manguebit, que efervesceu no Recife antes mesmo de você nascer?
NEGRITA MC – Eu acho que o movimento manguebit vive até hoje, ele não é só dos anos 1990. Pra gente que é do hip hop, a gente vê a correria do estúdio pra gente gravar, vivenciar produtoras que ainda não botam fé no nosso trabalho. O manguebit é também a correria dos artistas mais pobres pela sobrevivência, especialmente diante dessa experiência que aconteceu e acontece até hoje: o genocídio em massa da juventude negra e periférica brasileira.
A arte imita mesmo a vida real? Quais são as semelhanças?
NEGRITA MC – Viver uma abordagem de rotina, como eles dizem aqui, foi muito difícil porque eu nunca tinha sido agredida por policiais. Em Lama dos Dias, teve uma cena que os policiais abordaram a Kombi que eu tava com a banda Psicopasso. Eles rasgaram minha camisa. Na noite anterior a exibição da série Lama dos Dias, uma pré-estreia para a equipe e elenco, agora em junho, fui parada na madrugada por policiais por ter subido por trás do ônibus. Eu estava com o carrinho de bebê de Bryan, e ainda ia pagar a passagem. O motorista do ônibus parou em frente a delegacia e eu e meus colegas fomos obrigados a descer. Foi o terror ouvir os xingamentos de um policial enquanto amamentava, sentada no chão da delegacia. Vivenciar isso com meu filho nos meus braços, gravar a cena para a televisão: foi bem forte viver ambas as coisas. No outro dia nem pude estar presente na exibição. Fiquei bastante triste.
Seu nome tem estado em evidência, seja como mestra de cerimônia das principais festas do movimento hip-hop, e agora circulando pelo audiovisual pernambucano e consequentemente na televisão. Você consegue se sustentar financeiramente com a sua atuação profissional?
NEGRITA MC – A gente não se sustenta de arte e cultura ainda. Os produtores buscam, na maioria das vezes, pessoas que já tem talento (mas nem sempre) e história. E quem tem história profissional neste segmento é quem tem acesso ao meio. Então rola isso de padrão de escolher a dedo, escolhendo “fulano” que tem a estética de uma pessoa branca, de classe média. Os acessos são muito difíceis e se a gente não tiver o contato de alguém que dê valor ao nosso ‘corre’, que saiba de nossa vivência e nosso trabalho, é muito difícil. Se não buscarmos conhecer novos lugares e conhecer nossos trabalhos, a gente fica invisível. E essa questão da invisibilidade do povo negro ainda é mais forte na cultura, que dissemina os valores da sociedade.
Como você se sente enquanto mulher preta e periférica que transita por um ambiente totalmente diferente das “quebradas”, no caso, o cinema pernambucano?
NEGRITA MC – É uma forma de deslocamento. A gente tá se deslocando em áreas que a gente não consegue ter acesso, como jantares, restaurantes, hotéis e pronunciamentos mais formais, como a coletiva de imprensa que vou participar agora nesta quarta-feira (11) no Rio de Janeiro. Eu nunca tive isso de acesso, de estar hospedada em hotel 5 estrelas, e agora estou me deslocando do meu mundo real para o mundo que não é nada parecido com o que eu vivo, onde corro o risco de ser vista como mais uma favelada, etc.
Como você lida com esse deslocamento?
NEGRITA MC – Eu falo da minha dificuldade real. Mostro o que realmente estou passando e que não é fácil sustentar uma casa e uma família sendo mãe solo. Eu não tenho emprego fixo, não trabalho para o capital, não tenho a renda todo mês. Para isso preciso de um suporte financeiro. Na hora de viajar para tocar ou para gravar, preciso de alguém que cuide com meu filho, por exemplo. Por mais que tenhamos a escolaridade de ensino médio, não temos acesso, é muito escasso o trabalho pro povo negro de periferia. E quem aborda isso na ficção precisa sentir na pele, e não apenas escrever no roteiro. Precisa se basear de fato numa história real. E não fingir vivenciar aquilo que tu não vives.
Como você planeja a sua carreira para os próximos anos?
NEGRITA MC – Ir mais além do que sou. Tenho muita coisa para mostrar. Acho que Pernambuco é pequeno pra mim. Enfrentei muitas barreiras: agressões físicas, psicológicas, preconceito, assédio, machismo e ainda assim eu quero ir além porque tenho um talento enorme. Não só trampando no hip hop mas também no cinema. Quero utilizar desse prestígio para representar as mulheres negras e retirar a gente, que sobrevive nas periferias, da capa da invisibilidade que o mercado e a sociedade como um todo insiste em nos colocar.

Foto: Divulgação/Canal Brasil
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Débora Leão (Negrita MC) foi entrevistada por Kalor Pacheco, comunicadora social, roteirista, realizadora audiovisual e performer, também mulher preta e periférica, em uma atribulada tarde no município de Camaragibe, na Região Metropolitana do Recife – PE.