Impactos da Covid-19 no setor cultural


O Estado de Pernambuco contabilizou, na última semana, o total de 9.056 mortes por Corona Vírus, em face a 184.259 casos confirmados. No Brasil, já são mais de 173 mil mortos pela Covid 19, e no último mês a curva de incidência da Covid-19 voltou a subir. É sabido que o grupo de risco compreende, entre outros, os idosos e demais pessoas em situação de vulnerabilidade, ou seja, a população preta, indígena e empobrecida são os principais afetados nestes tempos de pandemia. No entanto, não é apenas a contaminação que põe em risco a saúde da nossa população, estamos vulneráveis à fome e problemáticas relacionadas à saúde mental. O falecimento do mestre de cultura popular pernambucano, Dudé do Coco, fundador do Boi Alvirrubro em Camaragibe, em decorrência de suicídio no mês de maio, às vésperas dos festejos juninos em que participaria enquanto coquista, motiva o presente artigo e traz à tona as contradições dos governos estadual e municipais em Pernambuco, acentuadas ainda mais em tempos de pandemia.
No início de ano, dezenas de artistas assinaram uma carta coletiva cobrando da Prefeitura do Recife e do Governo do Estado de Pernambuco medidas de apoio aos artistas em face a Covid 19, e a hashtag #CulturaPrecisaSobreviver deu título à campanha. “A Prefeitura da Cidade do Recife, desde o início das Ações Intensivas contra a Covid-19, já remanejou para a saúde R$ 11,7 milhões da pasta da cultura, um movimento, até certo ponto, compreensível para o momento. No entanto, existem empenhos lançados e serviços já realizados para a Fundação de Cultura do Recife, para pagamentos de serviços culturais e artísticos a pessoas jurídicas, que ultrapassam os R$ 39 milhões, grande parte deles referente ao carnaval”, informava a nota que, entre suas reivindicações, solicitava um “Fundo Emergencial: Renda de 3 meses para grupos e artistas, com destaque para artistas periféricos”. A mandata coletiva Juntas (PSOL), na Assembleia Legislativa de Pernambuco, e o mandato do vereador Ivan Moraes (PSOL), levaram adiante os pleitos.
O Conselho Estadual de Política Cultural/CEPC-PE, cuja finalidade, descrita pela lei nº 15.429, de 22 de dezembro de 2014, é a proposição de princípios, normas, diretrizes e linhas de ação da Política Pública de Cultura do Estado de Pernambuco, se manifestou no último dia 23 de maio, através de nota oficial no site Cultura PE: “Reconhecemos, também, a relevância dos recursos públicos em garantir prioridade com à saúde e à segurança da população e, tomando este mesmo princípio, indicamos como uma concreta alternativa para os fazedores pernambucanos de cultura, redirecionar os recursos financeiros previstos para realização do Festival de Garanhuns, Ciclo Junino, Festival de Triunfo, Fenearte, Ciclo Natalino e eventos”.
Um montante de R$ 1,982 bilhão foi o que o Estado de Pernambuco movimentou no Carnaval 2019, Carnaval este sustentado sobretudo pelas manifestações populares em todas as macrorregiões, os papangus do município de Bezerros, no agreste, e o maracatu de baque solto na zona da mata pernambucana, para citar alguns exemplos. Grupos de coco, ciranda e afoxé se apresentam nos palcos tanto de Olinda como de Recife, contratados pelas prefeituras ou pelo estado. A Prefeitura de Olinda, com um Carnaval que enxertou neste ano um total de 290 milhões de reais, mediante o 1,6 milhão de reais investidos pelo poder público, também ficou devendo aos artistas que se apresentaram. E, assim, muitos mestres e agremiações de cultura popular ficaram, em meio a uma pandemia, a espera do que lhes era devido.
A ialorixá Mãe Beth de Oxum, do terreiro Ilê Axé Oxum Karê, no bairro do Guadalupe, em Olinda, que mensalmente mobiliza a sambada de coco do Guadalupe há 20 anos, movimentando assim a economia da comunidade, devido a Covid 19 está em quarentena. Mãe Beth postou em seu instagram uma foto onde aparece cozinhando à lenha. “Isso é o resultado da presença do vírus e da ausência de políticas públicas que garanta auxílio emergencial aos artistas. Em tempo de Corona, a cultura na lenha”, publicou a vocalista do Coco de Umbigada. Dois dias depois, reforçou a crítica na rede social, com a seguinte pergunta: “Prefeito de Olinda, cadê o pagamento do Carnaval? Dois meses de Quarentena, agora Lockdawn. Tenha consciência, pague nosso cachê. Francamente, esses gestores públicos são desumanos” (sic).
Sendo os idosos um dos principais grupo de risco afetados pela Covid 19, os mestres e mestras da cultura popular, em sua maioria da terceira idade, sofrem não somente com a ausência de políticas públicas emergenciais. A falta de compromisso do poder público, ao não pagar os cachês com atrasos de três meses, também pode ser observada sob o viés da restrição do acesso destes ao Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura – Funcultura, que acaba por privilegiar algumas linguagens em detrimentos de outras, com distribuição de recursos nem sempre condizentes com o tamanho da população de fazedores das culturas populares.
A ABD/Apeci (Associação Brasileira de Documentaristas/Associação Pernambucana de Cineastas) reforçou, também no Instagram, a ausência do estado em cumprir com as suas mínimas obrigações. “Chega a crise do Covid 19, milhares de artistas e técnicos da cultura ficam sem emprego e renda. E o Governo de Pernambuco, o que faz? Promete pagar os cachês atrasados do Carnaval. Evento realizado três meses atrás. Cultura é emprego e renda: cumprir o que está programado é obrigação. O momento exige mais”, pontua. Ainda na série de publicações da entidade, como enfrentamento à postura governamental, salientam a resposta que, segundo a ABD/Apeci, receberam do Estado de Pernambuco, a de “não ter condições de criar novas despesas para o setor”. A postagem relaciona o exemplo no estado do Ceará, ainda que sob queda tributária, conseguiu direcionar 1 milhão de reais do seu Fundo Estadual de Cultura, em caráter emergencial, para dar suporte aos artistas afetados pela quarentena através do edital “Festival Cultura DendiCasa: Arte de Casa para o Mundo”.
O Governo do Estado de Pernambuco possui uma série de editais voltados à cultura, entre eles o 2º Edital do Microprojeto Cultural, no valor de R$ 640 mil, o Funcultura Geral, por R$ 15.680 milhões, e o Funcultura da Música, com R$ 4.160 milhões. Em 2020, o Funcultura irá incentivar a produção cultural independente de Pernambuco com recursos na ordem de R$ 41 milhões. Só para a linguagem audiovisual, que movimenta uma cadeia produtiva bastante extensa, no último edital, um total de 20 milhões será destinado a produção, difusão, circulação, formação, entre outros setores produtivos da linguagem. Houve reivindicação por parte do movimento Negritude no Audiovisual PE para que o primeiro edital, voltado a produção de séries e longa-metragens, tivesse pelo menos 50% reservado aos proponentes e equipes racializadas, uma vez que históricamente esses recursos são acessados sobretudo pelas pessoas brancas e de classe média.
Na contramão do acesso que os profissionais negros do audiovisual vem conquistando, quando o assunto é o segmento de cultura popular, no Estado de Pernambuco, ainda há muito o que se conquistar. Além de os editais possuírem uma complexidade maior, com burocracias que acabam se tornando barreiras para que aquelas pessoas menos letradas acessem os recursos, apenas R$ 2.126.280,00 são destinados à linguagem de cultura popular e tradicional no Funcutura Geral. Mesmo somados ao montante oferecido neste ano pelo 5º Prêmio Ariano Suassuna de Cultura Popular, com recursos de R$ 151 mil, a cultura popular permanece a mais de 17 milhões de reais em distância do montante destinado ao Funcultura Audiovisual.
As práticas culturais da maioria da população brasileira, como podemos observar no recorte da cultura popular pernambucana, são majoritariamente construídas por corpos negros e indígenas. Representam a maioria da população mas não possuem lugar cativo na mídia, a não ser nos ciclos festivos como o Carnaval ou o São João, perdendo espaço para os anúncios de cinema hollywoodiano e mega estruturas de shows. Os governos seguem o mesmo compasso da iniciativa privada, e ainda reprime as manifestações culturais que emanam do povo, como o passinho, o funk, o maracatu, o coco de roda, etc.
Em uma noite de domingo, em maio. no município de Camaragibe, região metropolitana do Recife, situado a 13 m da capital pernambucana, foi encontrado morto enforcado o mestre Dudé. Neste mesmo município, anualmente se paga cachês na faixa de R$ 58 mil (cantor Otto) a R$ 150 mil (Babado Novo), para citar alguns exemplos, enquanto agremiações carnavalescas com mais de 100 componentes, moradores das comunidades, recebem entre 500 e 3 mil reais. Assim como a prisão de artistas periféricos como o DJ Rennan da Penha, no Rio de Janeiro, ou como o massacre em baile funk de Paraisópolis, em São Paulo, a precarização da saúde mental dos mestres de cultura popular e mesmo suas eventuais mortes recaem sobre o estado. Sobretudo em tempos de pandemia.
Texto escrito em 17 de maio de 2020, reeditado e publicado hoje.