“Depois de nos soterrar, eles oferecem a mão para nos tirar da lama”

Texto: Lenne Ferreira

Primeiro, eles deixam nossas casas desabarem. Depois, oferecem abrigo.
Primeiro, eles nos deixam com fome, depois, oferecem o que comer.
Primeiro, eles nos negam oportunidade, educação, renda, lazer, nos colocam no lado da cidade onde a infraestrutura é deficiente, onde o saneamento não chega a ser básico. Depois, aparecem com soluções imediatas e assistencialistas.
No Brasil, a política do oportunismo se alimenta da miséria e sofrimento do povo. O mesmo governo, que nega investimentos para a região nordestina, que xinga e ridiculariza uma população historicamente explorada pelo colonialismo, estende a sua “mão misericordiosa” e culpabiliza a natureza por uma tragédia evitável. São 100 mortes confirmadas, 16 pessoas ainda estão desparecidas e 5 mil pessoas ficaram desabrigadas na Região Metropolitana do Recife.
Esse mesmo Governo, que hoje se apresenta como solução, em 2019, orientou que a Caixa Econômica Federal boicotasse os pedidos de empréstimos dos municípios e estados da região Nordeste. Dinheiro que poderia ser usado, entre outras coisas, para melhorar a infraestrutura de cidades que ainda sofrem com a falta de saneamento e políticas habitacionais que poderiam dar mais dignidade à vida das pessoas. Agora, o presidente da república aparece sobrevoando cidades nordestinas e oferecendo um pacote de soluções emergenciais, que são mais do que necessárias diante deste cenário de caos. A ajuda, no entanto, não pode encobrir o descaso com o qual Bolsonaro tratou nossa região durante todo o seu mandato.
De olho nas eleições, Bolsonaro acaba de destinar a maior parte do orçamento secreto da União para ajudar o Nordeste, que concentra 40,2 milhões de eleitores aptos a votar (26,8% do eleitorado brasileiro). Estamos falando do segundo colégio eleitoral do país. De acordo com informações de O Globo, nenhuma outra região do país recebeu tantos recursos do orçamento: R$7,7 bilhões, dos R$21,7 bilhões. Ao lado de sua comitiva, sobrevoou municípios e acenou para os “paraíbas”, como já se referiu ao nosso povo tantas vezes. A oferta emergencial do presidente vai na contramão do atual orçamento destinado para lidar com as consequências de desastres que atingem populações que vivem em área de risco. Em 2012, o orçamento federal para gestão de risco e resposta a desastres era de 4,2 bilhões. Hoje, são apenas 440 milhões, o que é muito pouco para a realidade brasileira, segundo o biólogo Alexandre Pires.

A necropolítica implantada pelo Governo federal já devastou cidades do Sul da Bahia, para onde ele também destinou emendas. Agora, com o estado de emergência de Pernambuco, que deixou famílias inteiras desabrigadas e de luto, o presidente busca comprar a simpatia do povo. Falar sobre salvar vidas depois que elas já foram perdidas é um afronta. As soluções para lidar com o problema das moradias irregulares já são levantadas há anos pelos movimentos sociais e de Direitos Humanos, que seguem se esgoelando sem terem suas vozes ouvidas pelas gestões municipal, estadual ou federal.
Em 2020, dos mais de 65,5 milhões de domicílios ocupados pelos mais de 210 milhões de brasileiros, 5,127 milhões (7,8%) correspondem a moradias irregulares, segundo informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O percentual de domicílios irregulares do Sudeste é seguido de perto pelo Nordeste, onde 8,6% das quase 17 milhões de residência são enquadradas como aglomerados subnormais. Bolsonaro e toda essa corja de oportunistas sabem disso e, agora, se aproveitam da dor da população mais vulnerável para lucrar com votos. É esse o perfil de político que precisa ser limado do poder público. SOTERRADO!
A corrida eleitoral já começou e é preciso a vigilância de todos e todas que tem formação suficiente para entender essa jogatina inescrupulosa da política partidária. A mesma força empregada pelas pessoas, que, hoje, se mobilizam para ajudar famílias devastadas pelas suas perdas deverá ser empregada na difusão de informação para influenciar o voto nas urnas. Nas últimas eleições, a distribuição de cestas básicas para pessoas economicamente afetadas pela pandemia da Covid-19 serviu de arrimo de campanhas eleitorais. Diante da tragédia no Recife e Região Metropolitana, a visita de Bolsonaro e o movimento de outros políticos nas comunidades mais atingidas pelo descaso com moradores de áreas de risco precisa ser vista com total desconfiança. Primeiro eles promovem o nosso genocídio, depois eles se colocam como aliados.
Sabemos qual é a cor e classe social dos corpos enterrados vivos aos pés das barreiras. Sabemos de quem são os gritos que vazam nos vídeos que mostram casas despencando sobre crianças, adultos, idosos e animais. “Hei, Senhor do Engenho, sabemos bem quem você é”. Não vamos esquecer que, só depois de nos soterrar, vocês ofereceram a mão para nos tirar da lama.
Primeiro, vocês nos mataram. Agora, querem salvar nossas vidas.