Da Bomba do Hemetério, Paula Ferreira viu o mundo e ele começava pela Educação

Paula Ferreira foi a primeira pessoa de sua família a concluir o ensino fundamental e fez da Educação uma ferramenta de luta por igualdade
Texto: Giovanna Carneiro | Edição: Lenne Ferreira | Foto: Edmilson Assunção
Ser uma pessoa negra é ter a raça como um mobilizador constante de suas decisões, sejam elas pessoais ou profissionais. Escolher o que vai ser quando “crescer” muitas vezes é um privilégio daqueles que possuem aportes social e financeiro que a população negra e periférica ainda desconhecem. Além disso, o desejo de mudar a sua realidade e a realidade de seus semelhantes, que muitas vezes é marcada por contextos de silenciamento e violência, se torna um objetivo maior, um sonho de toda uma vida.
Criada na comunidade da Bomba do Hemetério, bairro da Zona Norte do Recife, a pedagoga e educadora social Paula Ferreira, sabe bem da influência que as raízes exercem sobre suas escolhas. Primeira pessoa a concluir o Ensino Médio de sua família, ela entendeu cedo que a Educação é a ferramenta que pode transformar realidades e decidiu fazer de sua atuação profissional enquanto pedagoga um caminho de luta para a promoção de igualdade e justiça social.
“Eu tinha muitas inquietações sendo uma menina negra periférica, porque eu percebia muitas coisas, mas eu demorei a entender algumas dores. A própria escola pública era um espaço de silenciamento e eu só entendi isso aos 27 anos, quando me identifiquei como mulher negra e pude entender que isso tinha relação direta com o racismo”, afirmou Paula ao lembrar de sua vivência como estudante na Escola de Referencia em Ensino Médio Professor Mardonio de Andrade Lima Coelho.
Paula, assim como grande parte da população negra do Brasil afetada pelo mito da miscigenação pacífica e apaziguadora, demorou a se reconhecer enquanto mulher preta e afirma que isso foi consequência da falta de conhecimento e formação da própria comunidade escolar em desenvolver uma educação capaz de letrar crianças e adolescentes sobre as causas e consequências do racismo.
“Eu me perguntei durante muitos anos ‘qual é o papel da educação mesmo?’ Porque eu ia pra escola muitas vezes e ficava ansiosa, não conseguia falar, sempre fui vista como uma das melhores estudantes, mas como eu conseguia trazer essa referência se eu era calada? Era mais um estigma sobre mim, eu era boa porque era calada, era uma relação de obediência. Só depois de muitos anos eu passei a entender que o papel da educação é outro, não é de silenciar é justamente o contrário, é trazer os/as estudantes para falar. A gente precisa de uma educação crítica, que traz essas vozes como potência”, declarou a pedagoga.
Em 2003, a Lei nº 10.639/03, que reconhece a importância dos estudos da cultura afro-brasileira, foi aprovada no Brasil. A legislação obriga as escolas de ensino fundamental e médio a ensinarem um conteúdo sobre história e cultura dos povos negros com estudos sobre África, luta dos negros no Brasil e pertinência do povo negro para a formação histórica e social do país. Já em 2008, a Lei nº 11.645/08 determinou também o ensino obrigatório da história e da cultura indígena.
A instituição das leis seria uma possível solução para os problemas apontados por Paula Ferreira e enfrentados pela maioria da população negra: a falta de uma educação carregada de representatividade capaz de fazer um resgate histórico e social das lutas enfrentadas pela população não-branca do Brasil. Porém, o que ativistas e profissionais da educação testemunham e relatam é que as leis não são cumpridas e os temas continuam sendo silenciados e negligenciados.
“Quanto mais nova você tomar consciência sobre o que é o racismo estruturante e conseguir elaborar estratégias para conseguir lidar com isso, melhor vai ser para sua vida. Eu me reconheci, me tornei e me amei como mulher negra só aos 27 anos. Hoje eu sou mãe de duas crianças – Eduarda e Pedro, de 5 e 12 anos. Meu filho, aos 4 anos, questionou uma professora que chamou ele de pardo, minha filha diz que é uma negra linda. Hoje como mãe eu fico muito feliz que meus filhos estão muito mais fortalecidos na infância do que eu, que na idade deles ainda nem sabia o que era o racismo, porque eu sei a importância que é ter consciência”, afirmou Paula.
Ativismo comunitário

Pedagoga do Centro Dom Helder Camara, Paula compõe a Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala (Crédito: Alcione Ferreira/Cendhec)
Aos 17 anos, Paula Ferreira começou a ter contato com a Auçuba, uma organização não-governamental que atua nas áreas de comunicação e educação, promovendo ações de formação de crianças e adolescentes desde 1984.
Através da atuação na ONG, a estudante de escola pública começou a criar um senso crítico mais aguçado e questionar o imaginário criado sobre a periferia onde cresceu: “eu passei a entender que a periferia não era um lugar violento, era um lugar violentado pela falta de política pública”.
Moradora da Bomba do Hemetério, Paula relembra como o preconceito sobre o seu território afetava o seu cotidiano: “tive que lidar com esse preconceito em boa parte da minha vida e era algo que atingia todos os moradores da comunidade e então me surgiu essa perspectiva, de trazer a história da comunidade, porque o nome Bomba do Hemetério não tinha relação nenhuma com a violência, mas a própria mídia distorceu isso e as pessoas começaram a ter vergonha de dizer que moravam na Bomba. Bomba do Hemetério surgiu em homenagem a um morador que tinha uma bomba d’água e fornecia para a comunidade. O senhor, conhecido como Seu Hemetério, foi homenageado e assim surgiu o nome”.
Inconformada com os estigmas sociais que violentaram o seu corpo e o seu território, e a fim de criar novas narrativas, a educadora social se tornou coordenadora geral da ONG Auçuba e realizou os projetos Cine-Bomba Cultura e Comunidade, com sessões de cinema nas ruas e nas escolas, e o Núcleo de Formação na Bomba do Hemetério, com aulas em audiovisual para jovens da periferia. Paula foi a primeira coordenadora negra e periférica da ONG e destacou a importância desse feito: “falar de um território vivendo nesse território é diferente de falar sem ter essa vivência”.
Educação feminista e antirracista

A pernambucana busca contribuir com uma escola menos sexista e que garanta a permanência de meninas (Crédito: Divulgação/Cendhec)
Após anos de trabalho na ONG Auçuba, Paula Ferreira se formou em Pedagogia e se tornou também a primeira pessoa da família a terminar um curso superior, além de ter sido a única a concluir o ensino fundamental. Tendo consciência de como o contexto social, econômico e racial afeta diretamente no déficit da educação formal das pessoas negras, sobretudo das mulheres, Paula dedicou sua atuação a lutar por uma Educação pública de qualidade para crianças e adolescentes.
Atualmente, a pedagoga integra o projeto Na Trilha da Educação – gênero e políticas públicas para meninas, desenvolvido pelo Centro Dom Helder Camara com apoio do Fundo Malala. A iniciativa, que luta para que meninas tenham qualidade na educação e permaneçam nas escolas, é realizada em escolas dos municípios de Recife, Camaragibe e Igarassu.
“A perspectiva é que a partir do nosso trabalho nós possamos desenvolver uma pesquisa que vai ouvir meninas e profissionais da educação para entender como a desigualdade de gênero também está presente dentro da escola, os desafios que essas meninas enfrentam para conseguir permanecer na escola e o que leva a expulsão escolar”, explica Paula Ferreira sobre o projeto.
Dados da PNAD-COVID (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio), realizada em 2020, revelaram que, em setembro daquele ano, 6,4 milhões de estudantes não tiveram acesso às atividades escolares. Ainda de acordo com a pesquisa, negros e indígenas sem atividade escolar é o triplo de estudantes brancos: 4,3 milhões de crianças e adolescentes negros e indígenas da rede pública e 1,5 milhão de pessoas brancas destes segmentos. Os índices demonstram o abismo da desigualdade educacional entre brancos e não-brancos, que foi ainda mais agravado pela pandemia da covid-19.
Além do racismo, machismo e questões de gênero e sexualidade também são outros fatores que influenciam a evasão escolar, ou expulsão escolar, como destaca Paula Ferreira: “nós usamos muito o termo expulsão escolar porque a própria estrutura que é pensada para a educação acaba expulsando as meninas, elas não saem porque elas querem, geralmente há uma situação de pobreza, problemas raciais, de gênero e sexualidade, aparência, tudo isso faz com que a desigualdade se aprofunde e a escola deveria ser um espaço acolhedor e coletivo, mas acaba reproduzindo o racismo e o machismo que estruturam a nossa sociedade e isso pesa muito para as meninas. Por isso, o nosso objetivo é fazer com que os municípios pensem em políticas públicas que possam combater essa desigualdade de gênero que ainda é tão presente nas escolas”.
Através de sua atuação nas escolas de Pernambuco, Paula testemunhou relatos de violência contra as mulheres que muitas vezes são naturalizadas pela própria família das estudantes e no campo escolar.
“Nós conhecemos meninas que moram na área rural que a maior perspectiva educacional dela é concluir o ensino fundamental. Então, essas meninas repetem de ano propositalmente porque não tem como elas se deslocarem para outro município para continuar os estudos. Além disso, muitas dessas meninas acabam se casando muito nova, não concluem o ensino médio e vivem em uma relação abusiva e violenta. Enquanto isso, os meninos vão para outros municípios terminar o ensino médio naturalmente, é uma questão cultural”, contou a pedagoga.
Em 2021, o estado de Pernambuco contabilizou 86 crimes de feminicídio. Segundo a Secretaria de Defesa Social, esse número é 12,79% maior do que o registrado em 2020, quando ocorreram 75 crimes desse tipo no estado. Em abril deste ano, a secretária estadual da Mulher, Ana Elisa Sobreira, afirmou que 99% das vítimas de feminicídio não denunciaram os agressores nem procuraram ajuda.
Dados do 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelam que, no Brasil, duas em cada três vítimas de feminicídio em 2020 são mulheres negras, o que representa 61,8% das mortes. Nesse contexto de tantas violações de direitos, a Educação representa um meio para a garantia de melhores condições de vida e de enfrentamento às violências para as mulheres, sobretudo mulheres negras. É essa crença no poder mobilizador e transformador da educação que fez com que Paula Ferreira resolvesse dedicar sua trajetória pessoal e profissional ao ativismo educacional.
“Quando a gente chega nas escolas para debater o machismo muitas meninas começam a entender e questionar ‘por que meu irmão pode e eu não posso?’ e, com isso, algo que tinha sido naturalizado muda. Fortalecer desde cedo essas meninas é muito importante para que a realidade e o histórico familiar de violência seja quebrado”, finaliza a pedagoga.