“A terra plana de cada um e cada uma de nós”

Texto: Raquel Kariri
Atualmente, é fácil apontar um fascista. Um dos critérios é acreditar que a Terra é plana. Há outros, mas esse é um dos que mais rimos e balançamos a cabeça estupefatas. Quem nunca gargalhou, apontou e julgou como um delírio coletivo o fato de que muitas pessoas, no mundo inteiro, retornaram para a Idade Média?
“Lá vai um/uma fascista”, costumamos dizer. E, com isso, apontamos também o fato da pessoa reunir para si ideias racistas, lgbtfóbicas, misóginas e por aí vai… Um mundo extremamente rígido, onde ideias pré-concebidas não arredam nem um milímetro, onde só quem pensa como nós é admitido em nosso clube e há uma série de conceitos de como a vida deve ser.
Um mundo plano, de bordas finitas, conhecidas, sem a profundidade dos mistérios. Mas fico aqui pensando se isso só cabe mesmo a eleitores do ex-presidente Bolsonaro. Fico pensando se, na verdade, cada uma não possui, em algum lugar, uma terra plana.
Um lugar mítico, um lugar interno, onde o vento de novas percepções bate em nossas janelas mas nunca abrimos porque acreditamos saber exatamente onde o vento vai nos levar. Na verdade, nem bem-vindo é, pois, nos atrapalha com seja lá qual plano desenhamos para nossas vidas.
Neste lugar tudo fica meio sem graça, como as imagens terraplanistas. As bordas parecem muito bem estabelecidas e as divisões mantidas. Como os rígidos conceitos medievais, não conseguimos nos sonhar diferente: “Sou um desastre”, “Não faço nada direito”, “Todo mundo está melhor que eu”. E, de repente, entramos em mundos sem muita saída ou saída alguma, adotamos os referenciais errados e nos comunicamos por dentro deles.
É como debater com alguém que tem ideias muito rígidas sobre a vida. É interessante perceber que quanto mais acionamos argumentos, na verdade, estamos escapulindo para dentro do mundo desta pessoa. O auge disso é quando, enfim, perdemos a paciência e discutimos, nesse momento você selou sua presença na terra plana do outro.
Mas não fazemos isso o tempo inteiro? Conosco principalmente? A partir de referenciais que nos foram legados por uma civilização colapsada, caímos em lugares onde não conseguimos nos sonhar de maneira diferente. É muito cruel, pois há uma grande chance da terra plana ser o mundo mais conhecido e familiar que podemos ter e por falta de seres que nos apontem outras direções, o máximo que fazemos é decorar nossos buracos.
Não sonhamos mais, literal e abstratamente. Não aspiramos mais mundos compassivos e amorosos, isso ficou para trás. A força deste modo de vida que nos foi imposto é tão imensa que adoeceu a todas nós.
Mas ainda bem que a Terra não é plana, que há dignidade e nobreza, que seres extraordinários pisam e pisaram sobre essa terra nos apontando que há outros legados.