A pena por amar um preso

Deveria pesar uns 50 quilos a sacola de alças esgarçadas. A moça franzina se esforçava para conseguir sintonizar as passadas trêmulas. Andava e parava. Tinha que aproveitar que a chuva estiara e adiantar as pisadas pra chegar logo na fila que já dava voltas no domingo do Complexo Prisional do Curado. O ombro não estava livre do peso. Além de alimentos não perecíveis, guloseimas caseiras estão entre os itens preparados para adocicar a rotina dos homens que cumprem pena na unidade. Kássia, 24 anos, (“tanto faz com C ou K”) estava atrasada, mas estacionou a sacola no chão para tomar fôlego e continuar o trajeto.
“Visito meu marido e um primo há sete anos. Toda semana trago alimento, roupa. Não falto a nenhum domingo”, falou já se despedindo. Cada segundo para Kássia é valioso. Os dois filhos estavam em casa, pois a visitação naquele dia só era permitida para adultos. Três conduções a separam dos parentes detidos e da vida que tenta tocar sem muito apoio. Expulsa de casa, desempregada, dois meninos para sustentar, Kássia sabe que não é tão diferente assim daquelas outras que vão se amontoando na porta de entrada do presídio, com sacolas abarrotadas de afeto, que só não é maior do que o preconceito vivenciado diariamente.
Em Pernambuco ou em qualquer outro estado do país, ser mãe, esposa, irmã, avó ou tia de homens que cumprem penas em unidades prisionais é, antes de tudo, enfrentar uma rotina de discriminação. “Começa com o motorista do ônibus que, muitas vezes, não quer nem parar pra gente”, contou afobada Rose, como preferiu se identificar. Ida e volta é sempre assim. “Para a sociedade, mulher que visita preso não tem valor”. Há cerca de um ano, Rose levou seus documentos para a retirada da carteira que dá acesso ao presídio onde seu sobrinho, órfão de pai e mãe, cumpre pena. “Ele só tem a mim pra tirar ele da cadeia”.
Wilma Melo é especialista em políticas públicas e integra o Serviço Ecumênico de Militâncias nas Prisões (SEMPRI), que promove a humanização das prisões de Pernambuco e o acesso da população carcerária e seus familiares à justiça e à cidadania. Conhece de perto a rotina das mulheres que transitam em unidades prisionais masculinas do estado. Segundo ela, o país contabiliza hoje uma população de cerca de 650 mil detentos (mais de 300 presos para cada 100 mil habitantes). “São 650 mil mulheres, sejam esposa, mãe, tia, irmão, avó ou filha, com vínculos prisionais”, afirma. Em Pernambuco, só no Complexo Prisional do Curado, que fica no Totó, Zona Oeste do Recife, são 6.330 detentos (nas três unidades que formam o Complexo). O número é três vezes mais que a capacidade total.
Convivendo com os familiares dos presos desde 1997, Wilma diz que as visitantes enfrentam adversidades com consequências sociais, morais e psicológicas, deixando ainda mais evidente a forma desumana como o processo de ressocialização no país que tem a quarta maior população carcerária do mundo é realizado.
A cor da fila
Assim como a maior parte das mulheres com quem divide o corredor da fila de visita, a cor da pele de Rose é preta. Ela se queixa da forma como é olhada por agentes penitenciários, pelos vizinhos da rua e até pelos parentes. “Parece que foi a gente quem cometeu o crime”, diz ela, antes de se apressar para recolher as sacolas e acompanhar o fluxo da fila. A predominância de mulheres negras na espera denuncia um retrato recorrente em todo país e que tem raízes no racismo estrutural e institucionalizado que caracteriza a sociedade brasileira.
Em 2015, o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) divulgou uma pesquisa mostrando que os reclusos do sistema penitenciário brasileiro são majoritariamente jovens, negros, pobres e de baixa escolaridade. Quase 62% da população carcerária é formada por negros. Para a cientista social, mestra e doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo Natália Bouças, esses dados também servem para demarcar o perfil das mulheres que transitam como visitantes nos presídios. Natália que pesquisa a relação entre gênero e prisão em articulação com outros marcadores sociais como classe e raça, é taxativa: “Considerando que a Justiça é seletiva e que prende mais os pobres, pode-se supor que a maior parte dessas mulheres vem das classes populares. Muitas são jovens, esposas e namoradas dos homens presos. Mas há também muitas mães, um pouco mais velhas, que visitam os filhos”.
Há dois anos, Maria* deixa a sua casa em Joana Bezerra para visitar o companheiro no Complexo Prisional do Curado. São duas conduções (metrô e ônibus) até chegar no Totó. Mulher alegre e comunicativa, começa a mudar de humor quando vai se aproximando a vez de passar pela revista. “É humilhação toda semana. Agora, a revista é com sensor, mas ainda tem agente que manda a gente abaixar, que remexe toda a comida que preparamos, trata a gente mal”, reclama.
Em Pernambuco, a revista vexatória foi vetada há três anos por recomendação do Ministério Público de Pernambuco (MPPE). Desde então, os agentes penitenciários estão proibidos de obrigar mulheres a tirar a roupa e agachar três vezes sobre um espelho. “Mesmo depois da proibição, a revista vexatória ainda não foi totalmente abolida. Existem vários tipos de constrangimentos a que são submetidas mulheres que visitam presos. Tocar no seio delas, por exemplo, é uma forma de violação do seu corpo, mesmo que seja outra mulher tocando”, aponta Wilma Melo, do SEMPRI.
As revistas vexatórias foram implantadas no país para impedir que drogas, armas, chips ou celulares entrassem nas prisões. No entanto, uma pesquisa feita pela Rede Justiça Criminal, em 2014, com base em dados oficiais da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, mostrou que, de cada 10 mil visitantes, apenas três carregavam itens proibidos ao entrar nos presídios da capital paulista. A Rede promove a campanha “Fim da Revista Vexatória” para mobilizar a população de todo o país em torno do tema.
Para Maria, que fez questão de aumentar o tom da voz ao perceber a aproximação de um agente penitenciário que organizava o fluxo da fila, o constrangimento começa bem antes de chegar à porta do presídio. “Para mim, começa quando eu saio de casa, quando eu vou comprar algo e as pessoas me olham desconfiadas, quando eu fico nessa fila sem saber a hora que vou entrar. Só quem sabe é quem passa”.
[Confira, na próxima reportagem, como as mulheres lidam com os estigmas causados pelos vínculos com detentos e as formas de silenciamento impostas pelo preconceito]
*Nome trocado para preservar a identidade da entrevistada.