8M: Mais um dia de luta para ativistas de Pernambuco

No mês que comemora o Dia Internacional da Mulher, coletivos feministas de Pernambuco reforçam pautas em defesa da igualdade de gênero

Texto: Lenne Ferreira, Maya Santos e Giovanna Carneiro | Imagens: Tom Cabral

Denúncias relacionadas à importunação sexual aumentam 158% em janeiro de 2023. 35 mulheres foram agredidas física ou verbalmente por minuto no Brasil em 2022. Mais de um terço das brasileiras acima de 16 anos já sofreram violência física ou sexual provocada por parceiro íntimo ao longo da vida, revelou uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Datafolha. Nos dois primeiros meses de 2023, 24 mulheres foram baleadas na Região Metropolitana do Recife, segundo o Instituto Fogo Cruzado. As mulheres negras são as principais vítimas de feminicídio no País. Elas representam 67% dos casos notificados em 2020. 

Os dados evidenciam que, mesmo com conquistas importantes como a implementação da Lei Maria da Penha, a violência contra as mulheres segue produzindo vítimas no Brasil e no mundo. É graças à luta do movimento feminista brasileiro, que promove incidências políticas e ações de enfretamento aos sistemas racista e classista, que reinvidicações importantes não caem no esquecimento e pautam discussões nas esferas de poder. 

8M coloriu a Avenida Conde da Boa Vista (Imagem: Tom Cabral)

Como ocorre tradicionalmente em todo país, o 8 de março, Dia Internacional da Mulher, se torna palco para vozes femininas que não querem apenas homenagens Elas lutam pelo direito à vida. Em Pernambuco, ativistas feministas tomam as ruas da capital do estado “contra o Racismo, Feminicídio, Transfeminicídio, encarceramento em massa, pela legalização do aborto, por democracia popular e sem anistia para golpistas” em um grande ato que teve concentração do Parque 13 de Maio e marchou em direção ao Palácio do Campo das Princesas. A carta de reivindicações foi lida por uma das representantes do coletivo e resumiu as principais pautas defendidas pelo grupo de feministas que reuniu sem terras, marisqueiras, trabalhadoras domésticas, pescadoras, empreedendoras periféricas, mulheres cis e trans que lutam por autonomia e dignidade. 

Talita Rodrigues representou o grupo SOS Corpo (Imagem/Cortesia)

Ações para promoção da Justiça reprodutiva estavam na lista de prioridades elencadas. “Luta pela legalização do aborto é uma luta pela democracia”, defende a educadora Talita Rodrigues, integrante do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, que também participa da construção do 8M e tem entre suas principais bandeiras a legalização do aborto. “A importância da luta feminista pela legalização do aborto se dá de forma muito forte pela radicalidade da luta em defesa dos direitos das mulheres, que não aceitam nada menos do que o poder de decidir sobre o nosso corpo e nossas vidas em defesa da nossa autonomia sobre nossa história e trajetória”. A organização iniciou sua atuação na década de 80 com o objetivo de defender a igualdade de gênero, raça e classe com justiça social e ambiental. 

Para ela, a luta só é possível se for “necessariamente anti-sistêmica”. “Porque é uma luta que vai enfrentar os arranjos e determinações do sistema racista, classista e patriarcal que nos subjuga violenta e explora. No Brasil, a luta feminista tem sido fundamental para a garantia dos direitos que já tinha sido conquistados ao longo do tempo e barrar os retrocessos que tem se desenhado nos últimos anos. Também projetar pensamento, reflexão e ação na construção de um horizonte de justiça reprodutiva para todas as mulheres, sobretudo mulheres negras e empobrecidas”, conclui. 

O enfrentamento ao racismo foi outro ponto levado para as ruas do Centro do Recife durante o ato 8M. As mulheres negras são as principais vítimas de feminicídio no País. Elas representam 67% dos casos notificados em 2020, conforme dados de um levantamento feito pelo Instituto Igarapé, obtidos com exclusividade pelo jornal O Globo. Na Região Metropolitana do Recife, só no mês de Fevereiro, 13 mulheres foram baleadas, dentre as quais 8 foram a óbito, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado. Ana Maria Franca, que é coordenadora regional da entidade em Pernambuco, observa que Mulheres são mortas a tiros por serem mulheres. 

“O feminicídio é um terror presente na vida das mulheres e, infelizmente, todos os meses ficamos sabendo de casos brutais. A presença das armas de fogo em contextos de violência doméstica incrementa o risco para as vítimas. Em muitos casos, não fosse o emprego da arma de fogo, as mulheres poderiam ter escapado da morte.  Há ainda outro tipo de caso, quando as mulheres são vítimas de tiros enquanto estão acompanhadas de parceiros, filhos, demais familiares. Eles seriam os alvos principais, mas elas acabam atingidas”, afirma a cientista social e mestre em antropologia. 

Ao longo da manifestação do 8M, ativistas negras relembraram as desigualdades que atingem a população preta e periférica feminina e contaram com o reforço de parlamentares como a mandata Pretas Juntas. “Estamos aqui para pautar as mulheres negras, pautar a periferia, e para dizer que não silenciarão mulheres pretas nos espaços de poder. Para dizer também que somos nós mulheres pretas que direcionamos os movimentos da sociedade e movimentamos a economia”, afirmou Débora Aguiar, co-vereadora da mandata Pretas Juntas.

Transfemicídio em pauta

Não há mulher universal. Assim define a vertente do feminismo interseccional, que é formado por grupos de mulheres com identidades e vivências diversas. No dia 8 março, no Recife, transexuais e travestis também estiveram no centro da discussão sobre políticas que valorizem suas vidas e desmontem as lógicas violentas e desumanizadoras que atravessam suas “corpas” na construção do 8M. 

Apesar da transfobia ser crime desde 2019, previsto na constituição por meio da Lei 7.716/1989, o Brasil ainda é o país que mais mata pessoas trans e travestis, ocupando a posição pela 14ª vez consecutiva, em 2022, segundo relatório de monitoramento global Transgender Europe (TGEU). Somente no ano passado foram registrados 131 assassinatos de pessoas trans e travestis no Brasil. Ainda de acordo com documento, realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), houve registro de 175 transfeminicídios, sendo mapeadas 80 mortes no primeiro semestre de 2021. 

Maria Daniela representou as pautas das mulheres trans na construção do 8M pela AmoTrans (Imagem/Cortesia)

Os dados demarcam como os territórios são mais hostis para esse grupo de mulheres – que são os mais vulnerabilizados nas áreas da saúde, educação, empregabilidade e moradia, além dos índices elevados de violência cometidos contra elas -, com destaque dos estados do Norte e Nordeste. “Pernambuco vive, nos últimos três anos, uma escalada macabra em casos de transfeminicídio. Saltamos de 7° para 1° estado que mais assassina pessoas trans no Brasil, que por sua vez, é o líder mundial em assassinatos desta população há 14 anos consecutivos. Quase todas as mortes, com motivos fúteis, torpes, com requintes de cruel brutalidade, sem chances de defesa da vítima”, afirma Maria Daniela, integrante da Articulação e Movimento para Travestis e Transexuais de Pernambuco (Amotrans).

A brutalidade apontada por Maria Daniela, revela que, apesar de previsto na Lei 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, os crimes persistem principalmente pela falta de políticas públicas que possam respaldar as vítimas desde a denúncia até a responsabilização e aplicabilidade do que rege a Lei aos agressores de forma adequada. Em seu tema, a Marcha do 8M, no Recife, evidenciou a demanda de forma urgente: “Mulheres nas ruas contra: o racismo, o feminicídio, o transfeminicídio, o encarceramento em massa, pela legalização do aborto, por uma democracia popular e sem anistia para golpistas”.

“Mesmo ostentando o status de ser o estado [Pernambuco] com maior número de mecanismos para a prevenção da violência contra a população trans e a promoção da cidadania deste recorte social, as políticas estão sucateadas e sem recursos públicos, não são suficientes para reverter este quadro”, observa. 

Ao Portal Afoitas, a entrevistada também explica que há dificuldades para trabalhar as demandas das mulheres trans, e pessoas trans em geral. “Não é fácil trabalhar as bandeiras trans dentro de movimentos hegemonicamente cisgêneros, devido a toda transfobia estrutural da sociedade, assim como o CISsexismo do CIStema – sistema onde só é possível a existência das pessoas cisgêneras – e a visão cisgênera de sociedade”, pontua. 

Não muito diferente da luta das mulheres negras pela legitimação de suas pautas, as mulheres trans e travestis, sobretudo as negras e empobrecidas, também estavam distanciadas dos holofotes da inclusão nas lutas por direito. Um dos motivos está apoiado na lógica fundamentalista cristã, que deslegitima e desrespeita as mulheridades e identidades femininas, “com argumentos biologistas e genitalistas”, pensamento alinhado a setores mais conservadores da sociedade.

“O transfeminismo e as pautas trans, de forma geral, sempre foram construídas independentes do feminismo, que historicamente não pautava nossas demandas. A questão é que ambas as lutas têm circunstâncias que nos unem na essência: a luta contra o machismo patriarcal, o enfrentamento à violência contra a mulher, a luta pelos direitos de todas as mulheres e contra a opressão de gênero”, afirma a ativista. 

“Também bebemos da fonte das mulheres negras, que reivindicam o lugar de mulheres que não são brancas, de classe média, e nem cisgêneras – no caso das travestis, mulheres trans e pessoas não binárias. Temos nossas subjetividades que são legítimas, dentro do nosso recorte social. Da mesma forma, também temos nossas corpas e corpos violadas, violentades, e assassinades (sic)”. 

Marcela exigiu políticas públicas que olhem para as trans (Imagem: Cortesia)

 

Em meio às reivindicações pelo direito à vida, o silêncio para as pautas das mulheres trans e travestis tornou-se uma resposta. No 8M, Marcela Carvalho, integrante da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) nos concedeu uma fala direcionando sua insatisfação com a falta de amparo do Governo do Estado de Pernambuco.

“Precisamos de políticas públicas com um olhar específico para a nossa população em todas as áreas: na saúde, na educação e empregabilidade principalmente. A nossa população não está sendo assistida, então isso gera mortes, desemprego e vulnerabilidade social. Precisamos de um olhar da governadora Raquel Lyra para nossa população, um olhar específico imediato”, declarou Marcela ao Portal Afoitas. 

 

 

 

 

Com um governo sem equidade racial, Raquel Lyra prometeu criação de comitê 

O 8M de 2023 aconteceu em um contexto político ímpar em Pernambuco: pela primeira vez o estado está sendo governado por uma mulher. No entanto, o fato que deveria ser motivo de entusiasmo para a luta feminista tem se mostrado desafiador. Enquanto integrantes de movimentos sociais cobram de Raquel Lyra a criação de programas e políticas públicas voltados para o combate eficaz ao feminicídio e transfeminicídio, que apresenta uma crescente preocupante em Pernambuco, a governadora sequer se reuniu com as instituições da luta feminista. 

Ao final do ato 8M, Raquel Lyra afirmou que receberia um grupo de mulheres para uma reunião no Palácio do Campo das Princesas, local onde a manifestação foi encerrada. Porém, ao invés de abrir o diálogo com as manifestantes, a governadora projetou, mais uma vez, a sua imagem pacífica e conciliadora, em um gesto político que durou menos de 30 minutos. No momento em que o grupo escolhido para se reunir com a governadora se preparava para entrar no Palácio do Campo das Princesas, Raquel Lyra veio de encontro às manifestantes, acompanhada da vice-governadora e das mulheres que compõem seu secretariado, para cumprimentar as manifestantes e, segundo ela, “ouvir as demandas das mulheres”. 

Encontro de gerações de lutas no 8M (Imagem: Tom Cabral)

Após caminhar entre as manifestantes, a governadora se posicionou no meio do ato e ouviu a leitura do manifesto com apelos dos movimentos sociais feministas para a criação de políticas públicas voltadas para as mulheres. Em seguida, Raquel fez um discurso que durou cerca de cinco minutos, onde afirmou ter a pretensão de criar um grupo de trabalho com as mulheres do 8M e prometeu trabalhar incansavelmente para garantir uma melhor condição de vida para as pernambucanas. Durante a sua fala, Raquel foi interpelada por algumas manifestantes que questionaram “governadora, e as mulheres negras?”, “cadê as mulheres negras no governo?”. A governadora preferiu não responder os questionamentos e seguiu com o discurso. Depois dessa breve aparição, Raquel Lyra seguiu de volta para o Palácio do Campo das Princesas e, diferente do que tinha sido acordado anteriormente, não recebeu o grupo de mulheres para a reunião. 

Escrito por:

Lenne Ferreira

lenneferreira.pe@gmail.com

 @lenneferreira